Jornal Estado de Minas

Onde os rios morrem

Leitos secos agravam problema de falta de água potável no semiárido mineiro



É um campo de futebol, mas já foi um rio. O Córrego Bolas levava água à comunidade dos Martins, na zona rural de Jenipapo de Minas, no Vale do Jequitinhonha, e atraía famílias para o local, remanescente de um quilombo. Hoje, as 32 casas penam com a falta de água potável. Distante 14 quilômetros da sede do município, a comunidade depende de carro-pipa enviado pela prefeitura. Muitas famílias têm cisternas que captam e armazenam água das chuvas, mas quase nunca é suficiente. O poço artesiano que abastecia a população secou. Na última parte da série de reportagens sobre a falta de água potável no semiárido mineiro, o Estado de Minas mostra como a alta no número de rios, córregos e ribeirões secos aflige comunidades rurais da região.



A situação do Córrego Bolas se repete no povoado de São José do Bolas. Lá, quem morreu foi o Córrego do Granja. Nascido e criado no local, seu José Geraldo Ferreira Guedes, 67 anos, lembra de quando o rio corria e suas águas eram usadas para molhar a lavoura e dar de beber “para a criação”. O Córrego da Furquia, em Araçuaí, também parou de correr em fevereiro, época de chuvas. Água, agora, só quando chove e, mesmo assim, muito pouco. Quando era perene, o córrego abastecia os moradores de Palmital de Baixo, uma das comunidades da zona rural do município. Foi por causa das águas da Furquia que seu Sebastião Pinheiro Ferreira, 71 anos, se mudou para o local com a mulher e os filhos há 17 anos.

Veja a galeria de fotos do semiárido mineiro

 

Ele morava no povoado de Narciso, também em Araçuaí, mas, como a água andava escassa, resolveu se mudar. Durante um tempo tudo funcionou. Mesmo sem água tratada, a família tinha o rio e algumas cisternas. Um dos limites de sua propriedade era o córrego, cuja nascente fica em Novo Cruzeiro, município vizinho. Para chegar em casa, era preciso tirar os sapatos para não molhá-los. “Nas ‘cheias’ a gente ficava dias ilhado aqui. Ninguém saía ou chegava. Nem as crianças iam para a aula”, conta Maria das Neves Pereira Alves, mulher de seu Sebastião.

Só nas chuvas
Hoje a família vive da escassa plantação de mandioca, para a produção de farinha. “Nunca fui rico. Toda a vida fui fraco, sem ninguém importante para me ajudar a conseguir alguma coisa.” As águas dos rios Calhauzinho, São José, Diamantino, Lajinha, e Brejão também secaram e praticamente não correm mais naquela região, a não ser em época de muita chuva.



Para o ambientalista Apolo Heringer, idealizador e coordenador do projeto Manuelzão, que trabalha pela despoluição de leitos, os chamados rios temporários são comuns no semiárido brasileiro, mas estão definhando ainda mais por causa do desmatamento. “A água da chuva não infiltra no chão e vai direto para o oceano, assoreando os rios”, afirma. Outro problema, diz, é a substituição do cerrado pelas plantações de eucalipto. Enquanto o primeiro tem a característica de conservar muita água pelo seu caule e frutos, os eucaliptos “chupam” todo o líquido disponível. “Isso faz o rio secar mais rápido.” Heringer, professor de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também critica o despejo de esgoto nos rios. Conforme mostrou o EM, muitos moradores da região são obrigados a tirar água dos mesmos leitos que recebem dejetos.

A Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), segundo o presidente da empresa, Ricardo Simões, tem como meta atender até 2014 as 463 localidades sob responsabilidade da Copanor, subsidiária no Norte e Nordeste do estado.

Difícil era “olhar o arroz”


Era a segunda metade da década de 1970. Ainda criança, morava numa fazenda em Francisco Sá. A casa dos meus pais ficava a 300 metros do Rio Caititu. A seca – como é histórica – naquela época já existia. Mas, graças à presença do rio, os efeitos da estiagem nem eram sentidos. O Caititu corria caudaloso o ano inteiro. Nos períodos da estiagem severa, as partes baixas próximas do rio eram tomadas por plantações de alho. A oferta de água era tanta que bastava um pequeno açude para a água correr para os canteiros por gravidade – “água de rego”, como se dizia. Para os jovens, o ofício oferecido era o de “olhar arroz” – espantar pássaros da plantação. Tomar banho no Caititu também era diversão garantida. Hoje, o rio virou intermitente e praticamente só existe no período chuvoso. Mas uma gameleira, que já serviu de trampolim, resiste ao tempo. Talvez para refrescar a memória de quem conheceu o Caititu no passado e provar que o lugar onde o rio corria é aquele mesmo.

Um povoado quase fantasma

Malhada Branca, povoado a cerca de 20 quilômetros de Virgem da Lapa, a 560 quilômetros de Belo Horizonte, corre o risco de virar uma comunidade fantasma. Ali já viveram 55 famílias. Hoje, são 33. Muitos moradores abandonaram suas casas e partiram para cidades maiores de Minas ou de outros estados. O motivo é a falta de água.



A localidade, que leva o nome do córrego que corria caudaloso, conta com dois poços cavados pela Fundação Rural Mineira (Ruralminas), mas não dão água. Quem não tem cisterna de placa, usada para coletar água da chuva e abastecer as casas, depende exclusivamente dos caminhões-pipa da prefeitura, que não dão conta de atender a demanda das 52 comunidades rurais do município.

A construção de uma cisterna de placa é o que alimenta a esperança de voltar para a casa de Marcos Rocha Fonseca, 22 anos, que há dois anos deixou o povoado e foi trabalhar de garçom no litoral de São Paulo. Sua mãe, Maria Rocha, também se mudou para a cidade com os dois filhos menores. Nem mesmo o mar atraiu o rapaz. “Eu queria mesmo é nunca ter saído.”

Vontade de voltar


De férias na terra natal, Marcos e outros moradores da região estão construindo na casa abandonada pela família uma cisterna de placa. A obra é feita em regime de mutirão com a ajuda do sindicato e de uma associação cristã que atua em toda a região do semiárido mineiro. A casa da família de Marcos é uma edificação típica da zona rural, sem laje, apenas telhado, com as paredes internas pintadas de cores fortes. “É uma casa muito boa. Não tem comparação com o lugar em que eu moro em São Paulo”.

Outras casas estão vazias por causa da migração para o corte de cana e colheita de café. A Pastoral da Migração, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, estima em 35 mil o número de pessoas do semiárido mineiro que buscam emprego em outros estados.