Os destroços de aço, vidros e borracha de um caminhão acidentado, abandonados num socorro automotivo em uma curva escura do km 420 da BR-381, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, são um símbolo de impunidade no trânsito que desperta emoções diferentesSempre que o comerciante Adair Geraldo Syrio Júnior, de 31 anos, passa por lá e vê o Ford Cargo de 13 toneladas, se lembra da noite de 11 de março de 2009, quando aquele veículo bateu na van em que viajava, ferindo-o e matando o seu irmão, o universitário Albert Silva Syrio, 26 anos, e cinco colegasNinguém ainda foi julgado e condenadoUma vez por mês o motorista do caminhão passa pelo trecho, indo de São Paulo para o Nordeste, segundo os socorristasO caminhão retorcido, que a promotoria e a polícia afirmaram estar sem condições de rodar à época da tragédia, representa a capacidade limitada da Justiça em julgar crimes de trânsito.
Esse não é um caso isoladoDe acordo com levantamento feito pelo Estado de Minas nas 297 comarcas de Minas Gerais, por meio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), dos 58.866 crimes de trânsito ativos em 2010, como dirigir embriagado, homicídio e lesão corporal no tráfego, apenas 459 tiveram como desfecho o julgamento seguido de condenação – índice de 0,7% do totalA cada 1 mil processos, apenas sete tiveram a culpa comprovada e uma punição.
Autoridades da Justiça, Ministério Público, Polícia Civil e OAB-MG concordam que o índice de condenações é pequeno, mas divergem dos motivos para isso (leia mais na página 27)Para o advogado especialista em direito de trânsito da OAB-MG, Carlos Cateb, a situação reforça a impunidade “São índices alarmantesA Justiça está abarrotadaA lentidão faz o cidadão não acreditar na Justiça”, critica.
Penas alternativas
A juíza Maria Isabel Fleck, da 1ª Vara Criminal do Fórum Lafayette, afirma que 90% dos casos de crimes de trânsito chegam à condenação, ainda que isso possa demorar“No restante dos casos temos absolvições
No caso do desastre em Caeté, o processo tramitou entre outros 380 volumes em 2010Os juízes locais conseguiram condenar apenas um casoO trecho é parte da chamada Rodovia da Morte, como é conhecida a BR-381 entre Belo Horizonte e João Monlevade, no Vale do Aço, que recebeu a denominação por ser recordista de acidentes no estadoO índice de julgamentos de batidas, atropelamentos e tombamentos nas comarcas ao longo da estrada é pouco melhor, de 0,9%, ou seja, nove em cada 1 mil processos tiveram condenaçãoForam 2.547 casos, dos quais 23 com desfecho.
O comerciante Adair Syrio afirma nunca ter sido chamado para testemunhar sobre o acidente que vitimou seu irmão e os colegas“Só falei com o escrivão da políciaEle disse que a perícia mostrou que o caminhão tinha os pneus carecas, o freio amarrado e estava em alta velocidadeFoi um crime e, como tudo no Brasil, vai ficar impune se não reclamarmos”, disseA reportagem não conseguiu contato com o caminhoneiro envolvido no acidente em Caeté.
A dor da espera
Desde que o marido, Fernando Félix Paganelli, de 48 anos, morreu numa batida provocada por um estudante que subia a Avenida Raja Gabaglia na contramão, em fevereiro de 2008, a vida da dona de casa Ana Cristina Tavares Nunes Paganelli de Castro, de 43 anos, se tornou um inferno
Casos como este mostram que, apesar de ser mais rápida em julgar os crimes de trânsito do que a média dos tribunais estaduais, a Justiça em Belo Horizonte ainda está muito aquém de punir com rapidez aqueles que transformam as ruas e estradas em lugares perigosos para circularAté o fim de 2010, dos 6.406 processos ativos na Justiça comum e nos dois juizados especiais da capital, apenas 88 chegaram a um julgamento e obtiveram condenaçãoO índice é quase duas vezes melhor do que a média mineira, de sete julgamentos por 1 mil processos, chegando a 13 por 1 mil casos abertosNaquele ano entraram 1.653 processos para se juntar aos 4.753 acumulados de outros anos.
Responsável pela 1ª Vara Criminal do Fórum Lafayette, que ao lado da 12ª Vara é onde os crimes de trânsito são julgados na capital, a juíza Maria Isabel Fleck acha que a maior velocidade dos julgamentos em Belo Horizonte ocorre porque os processos são apreciados em duas varas específicas e não nas varas comuns“Isso torna o processo mais rápidoMinha média, por mês, é de 10 processos julgadosO resultado de 2010 deve ser ainda um resquício de 2009, que foi quando os processos vieram para os juizados especiaisSomos dois juízes em Belo Horizonte, mas estamos conseguindo dar respostas melhores à sociedade”, afirma.
Vergonha
Ainda assim o advogado especialista em direito de trânsito da OAB-MG Carlos Cateb, acha que muito ainda precisa ser feito para que o número pequeno de condenações não seja traduzido como impunidade dos responsáveis“É uma vergonha a condenação demorar tanto tempo que chegue a levar à prescrição de processosOs tribunais mineiros precisam encarar essa como uma realidade que mata mais do que outros crimes juntosHoje o trânsito é o maior responsável por mortesQuando o Judiciário não responde nos prazos corretos, isso reforça a impunidade.”
A jovem não segue o processo e tenta todos os dias superar as perdas e as marcas que leva no corpoForam dois meses internada, sendo três semanas em coma induzido, com edema cerebral, pulmão perfurado e o baço removidoEla ficou três meses em fisioterapia para recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo“Só soube que eles tinham morrido muito tempo depois, quando acordei do comaAntes, até liguei para o celular dos falecidos, sem saberEsconderam de mim para não prejudicar minha recuperaçãoFui saber pela televisão que colocaram no quarto do hospitalFoi um desespero, muita tristeza.”
Agora, Tamires reúne coragem para encarar a estrada novamente, para o curso de pós-graduação em Belo Horizonte“Minha família e eu estamos nervososVou rezar muito e, quando chegar, ligo dizendo que estou bem”, planeja.