O chapéu de palha sobre a vasta cabeleira, a calça dobrada acima da canela e o rosto avermelhado pelo sol da manhã mostram que Oriel Izidro de Abreu, de 67 anos, estava na lida. Como faz todos os dias, desde que acorda, ele gosta de cuidar da horta e das árvores frutíferas do seu sítio em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mas, logo depois do almoço, é sagrado, e o homem de fala tranquila e jeito despachado, pai de três filhos, não deixa de dedicar um dedinho de prosa a quem chega à propriedade acompanhado de um amigo dele. Com poucos minutos de conversa, não custa perguntar: “O senhor é daqui mesmo?”. Acostumado à indagação, Oriel tem a resposta na ponta da língua: “Sou sim, nascido e criado no Bairro das Várzeas”.
A surpresa durante a conversa está na pronúncia de palavras que têm o chamado “r” retroflexo, que se traduz, com todo o respeito, pelo chamado “r” caipira, aquele característico do Sul de Minas e interior de São Paulo. Porta, porteira, carne, cordeiro e várzeas, entre outras, soam diferente do modo de falar dos demais habitantes de Lagoa Santa, que fica a 36 quilômetros da capital. O motivo dessa particularidade está na formação do bairro, nascido com o nome de Vargem e fundado, em 1733, pelo bandeirante paulista Felipe Rodrigues. Durante muito tempo, o local ficou distante e isolado do restante da cidade, conservando a pronúncia peculiar. “Já trabalhei em outros estados e nunca mudei meu modo de falar. A língua é minha identidade, sem ela perco a minha personalidade”, acredita piamente o produtor rural, encostado na porteira do sítio.
O jeito especial de Várzeas, principalmente dos moradores mais velhos, mostra que Minas é plural em diversidade linguística, com muitos falares ou dialetos. Segundo a professora da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutora em estudos línguísticos Maria do Carmo Viegas, o estado é, no país, um daqueles com maiores variações na fala. “Várzeas é um caso muito interessante e específico, pois está num universo dominado pelo falar mineiro”, diz a professora, que organizou o livro Minas é plural, com textos dela e dos professores César Nardelli e Seung-Hwa Lee. A obra é resultado dos estudos desenvolvidos, na Fale, pelo Grupo de Pesquisa Var-Fon (Variação Fonético-fonológica, Morfológica e Lexical) de Minas Gerais. “As variações demonstram a riqueza do patrimônio linguístico mineiro, uma fonte valiosa para as pesquisas.”
Ao longo de 10 anos, o grupo estudou quatro tipos de falar no estado, que são o mineiro, na Região Central; baiano, no Norte, Noroeste e vales do Jequitinhonha e Mucuri; sulista, no Sul, Sudoeste e Triângulo; e fluminense, na Zona da Mata. “Essas variações são resultado da formação e da história de Minas, desde antes da época da mineração, nos séculos 17 e 18. Com a descoberta do ouro, chegaram aqui baianos, paulistas e outros, imprimindo as suas características linguísticas. Assim, o estado foi alargando as suas fronteiras físicas, culturais, sociais e econômicas”, afirma Maria do Carmo. O Var-Fon já colhe material para aprofundar as pesquisas e lançar outro livro, desta vez com o nome Minas é singular, alimentando ainda o atlas linguístico em produção no país.
Fronteiras
Além dos levantamentos bibliográficos, com destaque para os mapas feitos por Antenor Nascentes, em 1953, e Mário Zágari, em 1998, a equipe do Var-Fon saiu a campo, com entrevistas em Belo Horizonte, Lagoa Santa, na Grande BH; Ouro Branco, na Central; Piranga, na Zona da Mata; Itaúna, na Centro-Oeste; e Machacalis, no Vale do Mucuri. Maria do Carmo explica que os municípios de Ouro Branco e Piranga, distantes 85 quilômetros um do outro, foram escolhidos por estarem na “fronteira” entre o falar mineiro e o fluminense, portanto numa transição. Para o trabalho surtir o efeito desejado, os pesquisadores, durante as entrevistas, procuraram deixar as pessoas bem à vontade, pois, nessa condição, elas falariam realmente a língua materna (vernacular) aprendida na infância. Em Itaúna, no Centro-Oeste, também se verificou ocorrência do “r” retroflexo, característica, neste caso, de outra área de transição entre os falares mineiro e o sulista.
“De maneira geral, nós, mineiros, diminuimos ou engolimos a sílaba final e alongamos a tônica: “É por isso que ‘pertinho” se torna “pertim” e ‘casa de fulano’ simplesmente “ca de fulano’, diz a professora.
No falar mineiro, com exceção do Bairro de Várzeas, a característica é ausência do “r” retroflexo (caipira) e de vogais abertas, embora, da década de 1970 para cá, com a migração de trabalhadores, note-se o incremento nesse último tipo de pronúncia na Grande BH. Já no falar baiano, como verificado em Machacalis, os moradores primam pela maior abertura da vogal, a exemplo de merenda (mé-renda), covarde (có-varde) e corrupção (cór-rupção). O “r” retroflexo do Sul de Minas pode ter suas raízes na língua falada pelo índios tupis. “A hipótese é de que esses povos não tinham esse som, então para eles, neste aspecto, teria sido mais difícil aprender a língua dos colonizadores”, conta Maria do Carmo.
MINEIRO FALA ASSIM
>> FALAR MINEIRO
Região Central
Característica: Ausência do “r” retroflexo (caipira) e de vogais abertas, com exceção do Bairro das Várzeas, em Lagoa Santa. Desde a década de 1970, com as migrações de trabalhadores para a RMBH, vem se notando um incremento na presença de vogais abertas
>> FALAR BAIANO
Regiões Norte, Noroeste e vales do Jequitinhonha e Mucuri
Característica: Pronúncia com vogais bem abertas (exemplos: có-varde, mé-renda, neblina)
>> FALAR SULISTA
Regiões Sul, Sudoeste e Triângulo
Característica: “r” retroflexo (caipira)
>> FALAR FLUMINENSE
Zona da Mata
Característica: Em Piranga, na área de transição entre os falares mineiro e fluminense, há pronúncia de palavras com vogal aberta (mé-renda), embora, quando a sílaba seguinte apresenta o som “i”, isso não se observe (caso de neblina)
>> DE MANEIRA GERAL
Os mineiros cortam a última sílaba das palavras (ca em vez de casa) e apagam os plurais (vamo, em vez de vamos, fizero, em vez de fizeram etc.), os gerúndios (andano, no lugar de andando) e o “r” no fim dos verbos (fazê, em vez de fazer). Além disso, transformam o sufixo “inho” em “im”, fazendo, por exemplo, “pertinho” virar “pertim”. No país, há outros falares ou dialetos que também reduzem a sílaba final, mas em Minas essa prática é maior.