Com o pequeno cãozinho Flash, um boxer branco de olhar inocente, jeito preguiçoso e seis meses de vida, numa das mãos, o estudante de veterinária Jorge Antônio (nome fictício), de 22 anos, não podia acreditar que um animal tão indefeso precisaria ser morto. Contaminado pela leishmaniose, o mascote não tem salvação, a não ser a injeção letal, de acordo com normas técnicas da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso para não se tornar um foco de transmissão da doença, que já atacou 45 pessoas e matou cinco neste ano em BH.
Jorge tomou uma decisão controversa. Escondeu o bicho num sítio da Grande BH, onde ainda é uma ameaça. “Fiz vários exames. Deram positivo. Comecei um tratamento e ele ainda não apresentou muitos sintomas da doença. Apenas o pelo caiu”, conta. O diagnóstico negativo, que faz a felicidade de outros donos que não querem passar por pesadelos como o de Jorge, contudo, pode ser uma falsa sensação de alívio. Segundo estudo do laboratório de epidemiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o número de animais infectados na capital pode ser mais de 50% superior ao que detecta a Secretaria Municipal de Saúde (SMSA).
Com métodos mais eficientes, em teste feito em 2008 com 1.443 animais, o laboratório conseguiu atestar que 356 animais tinham a infecção, enquanto a secretaria identificou apenas 230 cães. Um índice 55% superior e que, de acordo com os pesquisadores, se repetiria todas as vezes, em razão similar, sempre que os dois testes fossem comparados.
Mantendo essa proporção, enquanto a SMSA conseguiu identificar 6.273 cães contaminados este ano até agosto na capital, o número real de animais infectados seria de 9.723. A quantidade aferida pelo município representa 5,6% dos 112.082 cães examinados. Se a proporção dos testes do laboratório de epidemiologia for mantida, a porcentagem de cães contaminados chega a 8,7%, uma oferta de animais infectados muito maior e à disposição dos mosquitos palha (flebótomos), que transmitem a doença para pessoas quando se alimentam do sangue de cães .
“Ainda não sabemos a importância dos animais não detectados pelos exames feitos pela prefeitura na dinâmica da contaminação de humanos. Mas a razão de animais infectados encontrados pelo nosso teste é muito maior. O método que usamos é mais sensível”, afirma o pesquisador Wendel Coura Vital, doutor em parasitologia na área de epidemiologia, cujo estudo que compara os métodos é parte da sua tese de pós-doutorado.
Segundo Manfredo Werkhauser, que é diretor Associação Nacional dos Clínicos Veterinários de Pequenos Animais e da associação nacional contra a leishmaniose Brasileish, sempre que um exame sorológico der positivo para leishmaniose o dono do cão deve pedir contraprova. “A eficiência do teste é de 80%. Ou seja, há 20% de chance de resultados cruzados e errados”, afirma.
Parasita
As gerências de zoonoses das regionais usam teste sorológico para detectar os animais infectados pelo parasita Leishmania infantum. O método consiste em detectar no soro – sangue – o anticorpo que combate o parasita. Já a metodologia do laboratório de epidemiologia usa a técnica chamada biologia molecular, que identifica o DNA do parasita no sangue dos cães.
De acordo com a SMSA, não há uma epidemia de leishmaniose visceral na cidade. “A doença mantém um comportamento de redução do número de casos, proporção de cães soropositivos e números de mortes nos últimos três anos”, justifica a SMSA em nota. De acordo com dados municipais, em 2008 foram registrados 161 casos da doença em seres humanos. Em 2009 chegaram a 148, em 2010 a 134 e neste ano foram 35 casos.
Nos casos de internação humana pelo SUS na cidade, levando-se em conta todos os tipos de leshmaniose, a tendência é de crescimento. De 2008 para este ano, pelos registros de janeiro a abril do SUS, esse número subiu 12%, de 107 para 130 casos.
Mosquito ataca mais em quintais
Para tese de pós-doutorado, o pesquisador Wendel Coura foi a campo e entrevistou 918 proprietários de 1.443 cães na Região Nordeste de Belo Horizonte. Desses, 22,8% tiveram animais contaminados. Por meio das informações, foi possível constatar que os cães mantidos em quintais têm 2,2 vezes mais chances de serem contaminados. Onde o mosquito palha já foi visto, a chance de ter o cão infectado é duas vezes maior.
Mascotes que pertencem a famílias com renda inferior a um salário mínimo acumulam 2,3 vezes mais possibilidades de serem contaminados. “Esse estudo ajuda a traçar a dispersão da doença no meio urbano. Assim, poderemos ver seu comportamento e propor formais mais eficazes de combate. O que fica mais evidente nesses perfis é que a questão social está diretamente ligada ao contágio”, afirma a chefe do laboratório de Epidemiologia da UFMG, Mariângela Carneiro.
De acordo com a SMSA, o teste sorológico é o indicado pelo Ministério da Saúde e realizado em outras cidades brasileiras. Por meio de nota, a secretaria informou que, no ano passado, foram borrifados 65.864 imóveis (com inseticidas) e coletadas 197.164 amostras caninas. Desse total, 15.495 deram resultado positivo para a doença e 11.541 animais foram sacrificados. Neste ano, até 15 de setembro, foram 116.299 animais foram examinados, com resultado positivo em 15.545 e sacrifício de 11.541 bichos.
Ainda segundo a SMSA, cães aparentemente sadios podem estar contaminados. “Os sintomas mais comuns são a perda de apetite, emagrecimento, feridas na pele (em especial no focinho e nas orelhas), queda de pelos, crescimento exagerado das unhas. Podem ocorrer diarréia e perda dos movimentos das patas traseiras. No cão, a doença ainda não tem cura nem tratamento eficaz”.