Jornal Estado de Minas

Seis dias que abalaram Belo Horizonte

Um poste de ferro fundido é ‘testemunha’ e marco dos seis dias que abalaram Belo Horizonte, há exatos 81 anos, durante a Revolução de 1930. Transformado há mais de meio século em mastro da bandeira do Brasil, na sede do 12º Batalhão de Infantaria (12º BI), subordinado à 4ª Região Militar (4ª RM), no Bairro Barro Preto, na Região Centro-Sul, o equipamento, antes usado na iluminação pública da Rua Tenente Brito Melo, se mantém crivado de balas, indicando a violência dos conflitos entre a Força Pública, antiga Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), e praças e oficiais do Exército. No saldo do episódio sangrento, que teve o quartel como palco principal, morreram mais de 50 pessoas, entre militares e civis. O fogo cruzado tomou conta das ruas, com os bondes parados, comércio fechado, cinemas sem funcionar e muito medo entre a população.



Mas para entender as razões do combate ocorrido entre 3 e 8 de outubro e, principalmente, da revolução, é preciso voltar no tempo, partindo da década de 1920, diz a professora de história da PUC Minas Carla Ferretti. A República Velha (1889-1930) começava a dar sinais de cansaço. As oligarquias rurais, com cafeicultores à frente, se enfraqueciam e as perspectivas econômicas se tornavam cada vez mais sombrias, culminando, em 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York e posterior crise internacional. Foi nesse cenário de instabilidade e quebradeira que o gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954), candidato da Aliança Liberal, com união de forças entre Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, e o paulista Júlio Prestes (1882-1946), de São Paulo e com apoio maciço das oligarquias, foram às urnas em 1º de março de 1930 na disputa pela sucessão do presidente da República Washington Luís (1869-1957), representante dos cafeicultores.

Minas e São Paulo se alternavam no poder, vigorava a política do “café com leite” – e estando na presidência Washington Luís, chamado de “paulista de Macaé”, era natural que o próximo chefe da nação fosse mineiro ou apoiado pelo estado. No entanto, quem ganhou a eleição mas não levou foi Prestes, pois o gaúcho derrotado deu um golpe militar, inaugurou a Era Vargas e ficou no poder até 1945.

O foco, então, se voltou para BH. Eram 17h25 de 3 de outubro quando os “revoltosos” da Aliança Liberal chegaram ao então 12º Regimento de Infantaria para comunicar a posse de Vargas, naquele mesmo dia, no Rio de Janeiro (RJ). É preciso lembrar que a comunicação a longa distância era difícil e as informações circulavam a passos lentos. Ninguém sabia de nada no quartel do Barro Preto, subordinado à 8ª Brigada de Infantaria, e, para piorar a situação o general da instituição tinha viajado. Nada, portanto, de comunicado oficial. Certo de que a sua obrigação era cumprir a Constituição Federal e ciente de que Prestes era o presidente, o comandante do regimento, tenente-coronel José Joaquim de Andrade, não se intimidou nem se rendeu e acabou preso pelo secretário de Interior (a pasta incluía Segurança Pública), Cristiano Machado (1893-1953). O governador de Minas, na época presidente, era Olegário Maciel (1855-1933), partidário de Vargas.



Da prisão, Andrade mandou um comunicado aos subordinados: “Aos que se encontram dentro do quartel, que resolvam como melhor lhes parecer, de modo refletido aos ditames e do dever naquele momento”. Num telefonema, ele perguntou ao major Pedro Campos, que estava no quartel, sobre a sua decisão e ele respondeu: “Salvar a honra do Exército, resistindo até o último cartucho”.

Operação de guerra

O quartel do Exército contava com 672 homens, sendo 47 oficiais e 625 praças, enquanto a Força Pública tinha em torno de 4,8 mil. Conforme a edição do Estado de Minas de 4/10/1930, na hora do expediente havia 200 praças ao passo que do lado de fora mais de 1 mil homens Os ânimos se acirraram quando o tenente José Moacir foi atacado na Praça Raul Soares pela Força Pública, oficiais foram presos nas residência e outros conseguiram entrar no quartel sitiado. Na cobertura dessa “operação de guerra”, o jornal relatou a ocupação de repartições públicas, a exemplo dos Correios, pelas tropas estaduais.

Há um ano e meio no comando do 12º BI, o tenente-coronel Alcio Costa, sergipano, se encantou com a história pouco conhecida dos mineiros, reuniu documentos e fotografias e tem feito palestras em escolas com um audiovisual. “Nesse episódio, não há mocinhos nem bandidos, apenas mocinhos. O Exército estava defendendo a constituição e a Força Pública cumpria ordens. Todos lutavam por um país melhor”, afirma. A resistência terminou no dia 8, com a rendição da tropa federal, que foi levada para o 5º Batalhão da Força Pública no Bairro Santa Tereza e depois para o Rio. Sobre a falta de informações, o comandante diz que, num radiograma (mensagem transmitida pelo rádio), o ministro da Guerra (hoje, da Defesa) dizia que a situação era normal e que mandaria reforços.



Linha do tempo

1920 – Começa a crise que leva à Revolução de 1930, com enfraquecimento das oligarquias rurais e sinais do fim da República Velha

1929 –Crise econômica internacional afeta cafeicultores que apoiavam o presidente Washington Luís

1930 –Em 1º de março, há eleição para a presidência da República, com vitória de Júlio Prestes sobre Getúlio Vargas

1930 –Em 26 de julho, João Pessoa, vice de Getúlio Vargas, é assassinado na Paraíba

1930 –Em 3 de outubro, Vargas dá o golpe e toma o poder. Em BH, começa o conflito entre a Força Pública e o Exército

1930 –Em 8 de outubro, termina o conflito em Belo Horizonte, com a prisão dos militares do 12º Batalhão de Infantaria

1930 – Em 3 de novembro, Vargas é empossado por uma junta militar como presidente do Brasil

1934
–Promulgada uma nova constituição, trazendo direitos como voto secreto e voto feminino

Quartel baleado virou atração

Na época, fachada do Regimento de Infantaria ficou cheia de buracos de balas e teve vidros quebrados (foto: Arquivo/EM - 1/1/1930)

 

Além do poste-monumento, que acabou apelidando o 12º BI de “batalhão do mastro crivado de balas”, há outras referências importantes do movimento de resistência de praças e oficiais. No museu da sede da instituição instalada em BH em 1919, há fotografias dos federais nas trincheiras construídas nas partes mais altas do terreno; paredes e telhados das casas vizinhas, furados como se fossem peneiras, pelas metralhadoras e fuzis; feridos nas padiolas; cavalos mortos; e os integrantes da força estadual durante o cerco, entre outros registros. Terminada a confusão, o quartel virou atração, com a população em peso visitando o local.

As pesquisas do Exército mostram que durante o cerco os federais tiveram a luz elétrica cortada, falta de água, pois o abastecimento pela prefeitura teria sido contaminado com creolina, escassez de alimentos e de atendimento médico, além de outros duros reveses. “Mas, no final, os vencedores reconheceram o valor do 12º BI e os praças e oficiais foram homenageados no Rio”, afirma o tenente-coronel. O Exército perdeu 17 homens, que foram sepultados num mausoléu no lugar do antigo paiol.

O presidente da Associação dos Reservistas do Brasil (Areb), João de Souza Armani, com integrantes da Marinha, Exército, Aeronáutica e forças auxiliares (bombeiros e policiais militares), destaca a importância do resgate da história. “Nos bairros Santa Tereza e Santa Efigênia há ruas com nomes de heróis do conflito, como tenente Garro, o primeiro a morrer, tenente Anastácio de Moura, tenente Vitorino e major Barbosa. Ficou a história denominada Resistência do 12”, diz Armani, lembrando que a sua mãe, moradora de uma casa no alto da Rua Rio de Janeiro, estava lavando roupa no quintal quando uma bala perdida ricocheteou e bateu no tanque.

MEMÓRIA

Força das oligarquias


Na República Velha, as oligarquias eram grupos políticos formados por uma pequena elite, na sua maioria composta por grandes proprietários rurais que controlavam o poder, agindo na política em função de seus interesses privados e pessoais. Em virtude da forma federalista do governo, no período, as oligarquias tinham sua base de poder nos estados, organizando-se em partidos políticos estaduais, explica a professora de história da PUC Minas Carla Ferretti.