Juiz de Fora – Todos os dias, quando acorda, a estudante de odontologia Sarah Oliveira Nascif de Almeida, de 22 anos, chega na sacada do seu apartamento e se assusta com o que vê na Praça da República. Bem na direção dos seus olhos está o Marco do Centenário, monumento construído para comemorar, em 1950, um século de Juiz de Fora, na Zona da Mata, e que tem como destaque um painel feito pelo artista modernista Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), conhecido internacionalmente como Di Cavalcanti. Tombado pelo município em 1996 e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2001, o local está entregue à própria sorte, com destruição das pastilhas de vidro, marcas de fogo na parede, pichação, quinas quebradas, além de sujeira e lixo espalhado. “É uma tristeza, pois é um trabalho de arte bonito, um patrimônio da cidade. Hoje a praça vive cheia de mendigos e o monumento precisa ser restaurado com urgência”, diz a estudante.
O estado lamentável do mural, peça principal do monumento projetado em 1949 pelo engenheiro Arthur Arcuri (1913-2010), se tornou famoso por ser o primeiro numa praça pública do país no estilo abstrato, e também o primeiro modernista feito em mosaicos vidrotil, material especial para painéis artísticos. Há uma semana, o promotor de Justiça Daniel Angelo de Oliveira Rangel instaurou inquérito para apurar a situação precária do bem cultural protegido pela União e município. Daniel informou, ontem, que a Prefeitura de Juiz de Fora foi notificada e o objetivo é firmar um termo de ajustamento de conduta (TAC) para preservação do monumento.
A direção do Iphan também já notificou a municipalidade para que faça a recuperação da praça e conservação do monumento. Segundo os técnicos, um projeto apresentado pela prefeitura contemplava apenas o painel de Di Cavalcanti, sem levar em consideração todo o espaço. Conforme o Iphan, o trabalho do artista foi influenciado pela obra do arquiteto Oscar Niemeyer e, para celebração do centenário da cidade, seria a forma de o poder público levar arte para espaços públicos e beneficiar o cidadão no seu vaivém pela região. Sobre o resultado, escreveu Di Cavalcanti: “Após procuras, encontramos para o Marco uma forma simples – uma parede que se curva, se desenvolve e se eleva – e a valorizamos com materiais construtivos de nossa época – concreto, cerâmica, pedra – explorando sua cor natural”.
O desenho do Marco do Centenário de Juiz de Fora, conhecida como Manchester Mineira, é composto, no centro, por três figuras humanas (geométricas) , representando as três raças puxando uma voluta (espiral), em alusão ao trabalho. Di Cavalcanti produziu outros painéis figurativos usando o mesmo material, como na fachada do teatro Cultura Artística (1950), em São Paulo (SP).
LIXO TOTAL
Quem circula pela Praça da República, no Bairro Poço Rico, próxima ao Centro, e diante do cemitério municipal, fica impressionado com o seu estado de degradação. Num banco, um casal de mendigos passa horas sentado olhando sacolas de plástico e remexendo numa marmita. Por volta das 17h30, um homem arruma dois pedaços de papelão sobre a grama e vai se preparando para o descanso. Uma jovem passa e, perguntada sobre o número de mendigos na praça, se preocupa mais com os termos usados: “Não são mendigos, são cidadãos de rua!”. Diante do silêncio do repórter, a jovem diz que a culpa é da polícia que “enxota” quem está quieto.
Moradores pedem providências
Há mais gente interessada em defender a preservação do patrimônio público, do lazer da população e da qualidade do espaço. Natural de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e morador de Juiz de Fora há 13 anos, o tecnólogo em qualidade Robson Nieves, de 41, se entristece com o quadro de deterioração. “Desde que a prefeitura inaugurou aqui perto um lugar para a população de rua almoçar e lanchar, a praça começou a ficar degradada. Eles vêm para cá e se tornam donos do lugar”, diz Robson, casado e pai de dois filhos. Ele diz que, antes da “ocupação”, gostava de passear com o cachorro, mas achou melhor parar, pois os mendigos ficavam “mexendo” com o animal de estimação. Também para andar de bicicleta, o tecnólogo conta que tornou impossível. Dono de bar na proximidade, Ronaldo Garcia Nogueira também é partidário da necessidade de se valorizar o patrimônio.
O susto maior mesmo está diante do painel. Nem a placa comemorativa do Marco do Centenário escapou, está quebrada em vários pontos. Onde havia um espelho d’água, o lixo se acumula – revistas velhas, garrafas pet, plásticos etc – e fezes garantem o mau cheiro. A dona de casa Eva de Oliveira, mãe da estudante de odontologia Sarah, já se cansou de pedir providências à prefeitura: “Antes, havia um chafariz perto do monumento e as pessoas lavavam roupa e depois as estendiam num varal. Era horrível. Pelo menos, acabaram com isso.”
Em 1999, depois de um longo período de descaso e abandono, mas também de mobilização popular pela preservação do Marco do Centenário, ele foi restaurado seguindo diretrizes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha/MG). Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a retirada do espelho d’água, posterior à restauração, e as condições do local levaram à perda de pastilhas, sujeira, manchas no revestimento, pichações e uma fissura no centro do painel de Di Cavalcanti, o qual foi tratado na intervenção de 1999. O painel ainda sofre com a trepidação do trânsito pesado da Rua Osório de Almeida.
NIEMEYER ERA O ARQUITETO COTADO
Uma corrente de historiadores garante que o Marco do Centenário, de inspiração modernista, nasceu da vontade de pôr Juiz de Fora no mesmo patamar de Belo Horizonte, que havia construído o complexo da Pampulha, que saíra da prancheta do arquiteto carioca Oscar Niemeyer alguns anos antes. Segundo informações do Iphan, Niemeyer chegou a ser convidado para participar da elaboração do mural, não podendo aceitar o convite por ter outros compromissos profissionais. No Rio de Janeiro, no escritório do arquiteto, o engenheiro Arthur Arcuri e Di Cavalcanti se conheceram, no momento em que o primeiro fora justamente pedir sugestão para a elaboração do mural figurativo que viria a compor o monumento. O Marco do Centenário foi concebido, segundo o próprio autor, como resposta aos postulados da “nova arquitetura” já enraizados nele.
Cidadão da arte
A veia artística do carioca Di Cavalcanti despertou logo cedo e quando seu pai morreu, em 1914, ele começou a fazer ilustrações para a revista Fon-Fon. Dois anos depois, se mudou para São Paulo (SP), estudou direito e começou a pintar. O jovem artista frequentava o ateliê do impressionista George Fischer Elpons e se tornou amigo de Mário e Oswald de Andrade, participando ativamente, em 1922, da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Entre as condecorações, está a medalha de ouro com a decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira, na Exposição de Arte Técnica, em Paris (1937). Recebeu da Universidade Federal da Bahia o título de doutor honoris causa. Ficou famoso por retratar mulheres.