A falta de necrotérios para a Medicina Legal e de veículos de traslado para a Polícia Civil, os chamados rabecões, pôs nas mãos de algumas funerárias do interior de Minas o controle sobre quase todo o processo que envolve sepultamentos nesses municípios. Cidades como Bom Despacho, no Centro-Oeste mineiro, usam até os laboratórios das empresas fúnebres para periciar os cadáveres. “Nós, legistas, achamos bom, porque de outra forma ficaria difícil de trabalhar. Só que há empresas que aproveitam para negociar seus serviços com os familiares”, conta um médico do Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte, que não tem permissão oficial para dar entrevistas, mas trabalhou em muitas cidades e conhece de perto essa realidade. “Como são só os carros de funerárias que recolhem mortos, a polícia criou um rodízio para dar chance a todas. Só que muitas delas recebem dicas dos policiais e furam a fila para ganhar mais um cliente”, afirma o legista.
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Os veículos de funerárias particulares recolhem corpos em sistema de rodízio em cidades grandes do interior, como Montes Claros e Pirapora (Norte de Minas), Pouso Alegre (Sul de Minas), Ouro Preto e Ponte Nova (Região Central do estado). O esquema é diferente do que ocorre em Belo Horizonte, onde funerárias instaladas em hospitais são confundidas com o serviço hospitalar e aproveitam para conseguir clientes. Algumas empresas chegam, segundo relatos de trabalhadores do setor e parentes de mortos, a subornar policiais civis para que levem corpos que deveriam seguir para o Instituto Médico Legal diretamente para as funerárias, que têm seus próprios médicos para lavrar atestados de óbito, como mostra o Estado de Minas desde domingo.
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Abordagens
Além de permitir direcionamento, o sistema de rodízio não é capaz de impedir que familiares sejam abordados por várias funerárias. Há casos frequentes em que vários carros de empresas correm para atender a uma mesma ocorrência , com os agentes funerários entrando em disputa pelo serviço. No último sábado, o motorista Antonio Geraldo Santos, de 52 anos, morreu depois de uma batida entre duas carretas na BR-251, próximo ao povoado de Curral de Varas, município de Grão Mogol. Momentos depois da batida, chegou ao local um carro da filial em Grão Mogol da Funerária Bom Pastor, acionada pelo perito por ser a “plantonista” da semana para transportar os corpos. Mas, menos de uma hora depois, também apareceu um carro da Funerária Avelar (filial de Francisco Sá). O carro desta última permaneceu no local por cerca de 10 minutos, e foi retirado depois que o perito comunicou que o “plantão” era da Bom Pastor.
Depois de transportar o corpo de Antonio Geraldo Santos até o IML em Montes Claros, a Funerária Bom Pastor foi contratada para fazer os serviços de preparação do corpo, o traslado e o enterro, realizado domingo, em São João do Pacuí, também no Norte de Minas. Os serviços funerais foram pagos pelo seguro feito pela empresa dona da carreta que ele conduzia, transportando material usado na fabricação de explosivos. “Às vezes, uma funerária está de ‘plantão’. Aí acontece um acidente e aparece no local o carro de uma outra funerária, que ficou sabendo primeiro do fato, por ter sido avisada antes. Não sabemos quem, mas pode ser gente da própria polícia rodoviária que passa a informação em troca de alguma coisa”, diz um comerciante do setor, que prefere não se identificar.
“Isso é completamente errado e caracteriza crime ou uma infração administrativa, passível de punição. Mas, para isso tem que ficar demonstrado que o policial agiu por algum interesse particular ou para receber algum tipo de favorecimento”, afirma a chefe substituta da delegacia da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Montes Claros, Heloisa Menezes. Segundo ela, todos os integrantes da corporação são instruídos a acionar sempre a perícia civil em casos de acidentes com mortos.
Repercussão
Leitores comentam no em.com.br
“Onde anda a fiscalização da prefeitura, direitos humanos,
Polícia Federal? Trata-se de um aproveitamento totalmente descabível”
André Lemos
“Isso não acontece somente na capital. No interior, as funerárias abusam também”
Jorge Castro
“Oh, Justiça! Isto acontece deste que inventaram este seguro (Dpvat). Sempre foi assim e começa no necrotério do hospital. É só ir à porta do IML e ver muitos que tratam desses assuntos”
Ricardo Gonçalves de Souza