A firmeza de Afonsina Leite de Oliveira, que não admitia a hipótese de sair da casa que viu ser construída e onde morou até o fim da vida, ajudou a garantir a sobrevivência de um conjunto de quatro casas em estilo eclético na elegante Avenida Álvares Cabral, no coração de Belo Horizonte, mesmo com toda a pressão imobiliária. Quando era procurada por empresários interessados em levantar arranha-céus no local, ela repetia: “Vou morrer aqui”. Sem saber, estava contribuindo decisivamente para a preservação da memória da cidade. Na casa ao lado, outra resistente era Maria José Rezende Neves, que também não cedeu às pressões.
Em 1994, quando tinha 90 anos, Afonsina ganhou um aliado: o conjunto foi tombado pelo patrimônio histórico municipal, garantindo que os imóveis permanecessem intactos. “Minha mãe não ficou triste com o tombamento”, recorda o engenheiro Carlos Eduardo de Oliveira, que nasceu na casa e até hoje mantém nela seu escritório.
A família Ferreira Leite sempre foi a proprietária de duas das quatro casas. A primeira, com 23 cômodos em três pavimentos, foi erguida em 1924; a segunda, de 1943, está bem na esquina, onde foi originalmente o jardim da residência e hoje abriga uma produtora de vídeo. Logo abaixo vem a casa onde vivia Maria José Neves, imóvel em que está instalado todo o acervo do Centro de Referência Audiovisual (CRAv) da Prefeitura de Belo Horizonte. O projeto dela é assinado pelo arquiteto Luiz Signorelli, fundador da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A quarta teve como primeiro morador o casal Aloísio Resende Neves e Helena Duarte Ribeiro Neves, mas não pertence mais à família. Nela, funciona hoje uma empresa de medicina e segurança do trabalho que, por determinação da prefeitura, está preparando um projeto para substituição do muro frontal da casa por grades que se assemelhem ao modelo original e presentes nas demais edificações do conjunto.
As quatro casas estão encravadas em um quarteirão triangular formado pelas ruas dos Timbiras e Rio de Janeiro e Avenida Álvares Cabral, e que apresenta uma peculiaridade: não tem prédios altos neste espaço. Carlos Eduardo conta que ele e o irmão chegaram a cogitar de substituir as casas da família por prédios, mas nem eles conseguiram avançar com a ideia. “A hipótese parava na conversa com minha mãe. Ela dizia: ‘Depois que eu morrer, vocês façam o que quiserem’.”
Conservação
O tombamento resolveu definitivamente a questão. Os dois filhos de Carlos Eduardo, da quarta geração de donos da casa, já cresceram convivendo com a realidade da preservação, mesmo que ela represente gastos para os proprietários. “Não pagamos IPTU, mas a inexistência do imposto não cobre o custo de conservação”, afirma o engenheiro, que está fazendo uma reforma no imóvel, sem alteração da estrutura original e mantendo, inclusive, as cores verde e pérola das paredes e vermelha nas portas e janelas.
Carlos Eduardo conta que a família chegou a encomendar ao arquiteto Éolo Maia um projeto de aproveitamento da área, respeitando o tombamento. A ideia era fincar pilotis e, sobre as casas, a partir de uma grande laje, erguer edifícios. Mas o custo inviabilizou a construção e o projeto nem sequer chegou a ser apresentado à autoridade municipal. “Era um investimento brutalmente caro. Nem sei se seria aprovado pela prefeitura, mas era inviável economicamente”, recorda Carlos.
Nas paredes da casa, emolduradas, estão expostas as plantas originais da edificação, datadas de 4 de outubro de 1923 e assinadas pelo arquiteto Octaviano Lapertosa. Os proprietários pretendem alugar o pavimento térreo, transferindo o escritório para a parte de baixo, mas Carlos Eduardo exige que os inquilinos exerçam uma atividade que ele considere “nobre”. “Não alugo para qualquer um”, avisa.
Os vizinhos hoje são edifícios
Comemorando a alegria de ter nascido naquela região, o engenheiro Carlos Eduardo de Oliveira recorda o tempo em que brincava entre as árvores da avenida ou que caminhava com segurança para a escola. Primeiro, para o Pandiá Calógeras, localizado ao final da Álvares Cabral, e, depois, para o Colégio Estadual Central. Lembra-se também, um a um, dos vizinhos que viviam em casas do outro lado da pista, onde hoje existem prédios em sequência. “Aqui em frente tinha a dona Helena, onde foi o Aloha (choperia), depois tinha José Gerardi. Mais embaixo era o José Pinheiro, uma família com uns 10 filhos”, cita.
Antes de serem erguidos os prédios que hoje predominam na região, do ponto mais alto da casa a vista ia longe. “Se subisse no sótão, a gente avistava o Colégio Loyola e até a Praça Raul Soares.” Com as mudanças que o tempo e o crescimento da cidade foram trazendo, o próprio Carlos Eduardo não quis mais morar no lugar e mudou-se com a família para um condomínio em Nova Lima. Por várias vezes, conta ele, insistiu com dona Afonsina para ir também ou mudar para um apartamento, mas ela não arredou pé. “Tentamos várias vezes tirar minha mãe da casa, porque ela estava morando sozinha. Ela dizia: ‘Não insistam, não vou sair daqui’.”