Os pingos grossos e frios da chuva que aperta na escuridão não detêm o avanço da mãe que procura o único filho. Cruzando vielas enlameadas e contornando becos escorregadios, na madrugada dessa sexta-feira, a diarista Nanci Cândido de Freitas, de 39 anos, uma das moradoras de áreas de risco ameaçadas pelas tempestades que devastam BH, vasculhou lugares à beira do Ribeirão do Onça à procura do adolescente de 14 anos que já deveria ter retornado para casa. A precipitação de mais de 24 horas, desde quarta-feira, só engrossou o turbilhão malcheiroso do córrego que toma proporções de um rio escondido pela noite. O ruído alto da correnteza, como o de uma catarata, só deixou a diarista mais preocupada. A água por várias vezes entrou na casa humilde onde Nanci vive sozinha com o garoto, destruiu móveis, roupas e mantimentos. “Ele tinha de ter voltado. Já está tarde. Chovendo muito. O rio (Ribeirão do Onça) pode subir, e ele arrasta tudo quando vem. Não vou sossegar enquanto não tiver certeza de que ele não corre perigo”, diz a mulher, aflita.
A angústia dos moradores é consequência da chuva dos últimos dias em BH. Nessa sexta-feira, na região da Avenida Cristiano Machado, o dia foi de contar prejuízos. O prefeito Marcio Lacerda assinou o decreto de emergência que prevê contratação de obras sem licitação. Enquanto isso, a Defesa Civil confirmou a morte de uma mais uma pessoa em decorrência da chuva no estado.
A via crucis da diarista Nanci em busca do filho desaparecido foi na Vila Novo Aarão Reis, na Região Noroeste de BH. Ela encarna a angústia de cerca de 10 mil pessoas que habitam áreas de risco à beira de rios e córregos em perigo iminente de inundação na capital. Para mostrar a aflição e o medo de quem convive com as ameaças, à beira dos rios ou dependurado nas encostas, a reportagem do Estado de Minas passou a noite de quinta-feira e a madrugada dessa sexta-feira entre seis vilas em áreas de risco durante a chuva que já causou alagamentos e prejuízos.
De acordo com a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), em 2009, época do último levantamento, havia 3.789 edificações em situação de risco de deslizamento de encosta classificados como alto e muito alto. Contudo, as enchentes e enxurradas em favelas se tornaram os principais vilões dessa áreas, matando 12 pessoas nos últimos seis anos. Os desabamentos em área de risco não vitimam ninguém há oito anos. A última vez foi em 16 de janeiro de 2003, quando nove crianças de uma mesma família morreram sufocadas pela lama, que invadiu o barraco onde elas dormiam, no Morro das Pedras, na região Oeste.
Passa da meia-noite. Nos caminhos estreitos da Vila Novo Aarão Reis, Nanci encontrou moradores inquietos. Um homem fumando da janela do segundo andar de seu sobrado sem reboco observou o céu carregado e o ribeirão ao fundo. Na esquina, de guarda-chuvas, outro vizinho percorreu de um lado ao outro o passeio. Como muitos, não conseguiram dormir nessas noites de chuva forte em que o Onça poderia avançar sobre suas moradias e ameaçar suas famílias. “Viu meu filho aí? Ele tá com os amigos? Com a namorada?”, perguntou a mulher, sem obter resposta dos moradores. Ela mostrou que, quando a chuva engrossou, mais gente apareceu nas ruas. Janelas escuras começaram a ser acesas. Nelas, as silhuetas preocupadas e insones dos moradores perambularam de um lado para o outro.
Reencontro
O estrondo do ribeirão ficou mais forte. No beco, a iluminação fraca permitiu vê-lo ao longe, com suas águas barrentas. Da janela do último barracão, à beira do Onça, veio o alívio: lá está Robert, o filho da diarista. Ela correu. Os pés afundaram em mais de três dedos de lama, sacolas de lixo, trapos de roupas, embalagens de alimentos trazidos pela correnteza. O garoto desceu, levou um puxão de orelha e voltou arrastado para casa. “Graças a Deus, ele está bem. Agora vamos de volta para casa, rezar para que a água não entre lá”, desabafou.
Na casa onde estava, mais histórias de medo e apreensão. No barracão alto, com uma mancha de barro do ribeirão atingindo um metro e meio da parede, vive a aposentada Maria Salete Braz dos Santos, de 35 anos, suas três filhas de 16, 14 e 12. Além delas, um sobrinho de 5 anos e uma de 11 anos foram trazidos às pressas. “A água do Onça subiu rápido e por isso busquei os meninos na casa da minha irmã, onde estavam sozinhos”, conta. A família passou o dia esperando baixar a água fétida que os cercou. À noite, fizeram vigília para não serem surpreendidos. “A gente não dorme. Parece que um caminhão de areia é despejado nas telhas quando chove forte e o ribeirão sobe rápido. Vou lá fora. Vejo minhas meninas uma por uma”, conta.
Os sobrinhos pequenos brincam com os primos como se estivessem alheios. Mas é só perguntar sobre as enchentes que admitem o medo, principalmente quando estão sozinhos. “A gente tenta tapear o tempo. Passar o máximo acordada. Se a água subir, a gente liga para os bombeiros, mas já aconteceu de gente ter de pular as janelas de casa em casa para escapar. Perdi fogão, geladeira, máquina de lavar, mantimento, muita coisa. Só a vida é que não tem jeito”, admite.
Em locais onde os moradores já deixaram as beiras dos ribeirões, o que domina a região são os traficantes de drogas e marginais. No Bonsucesso (Região Oeste), as margens do córrego de mesmo nome foram abandonadas. A madrugada de tensão pelas enchentes deu lugar ao tráfego de homens armados em garupas de motocicletas. Na Vila São Tomás, na Pampulha, as ruínas das casas à beira do Córrego do Onça se transformaram em currais para cavalos, chiqueiro de porcos e criatórios de animais domésticos. A chuva que faz o ribeirão subir ameaça apenas esses animais presos em seus redis. Pelo terreno desolado também perambulam homens que vendem drogas e que transitam armados.