Jornal Estado de Minas

Adotada, criança jogada em lagoa tem vida feliz

Sandra Kiefer
Parece milagre ver Letícia correndo de um lado para outro, brincando, viva
O primeiro impulso é tentar reconhecer os mesmos olhos arregalados que pareciam querer saltar para fora do saco plástico preto quando ela foi encontrada recém-nascida, abandonada sozinha pela própria mãe, boiando dentro da Lagoa da Pampulha, em 28 de dezembro de 2005Seis anos depois, a menina está diferenteSeus olhos brilham de felicidade“Quando chegou para nós, ela cabia na palma da mãoSó tinha olhoHoje, está crescida e é uma criança muito amada”, explicam os pais adotivos A., de 45 anos, contador e empresário em Belo Horizonte, e a dona de casa S., de 36Na época, Letícia chegou na sua nova família aos dois meses, pesando 3,6 quilosO casal fez todos os exames na menina, que não ficou com nenhuma sequela físicaTem a saúde perfeita.

“Ai, você está me apertando!”, protesta Letícia ao abraço forte, ajeitando os cabelos rebeldes, presos em um rabo de cavaloNão usa tiara, nem arco na cabeça, porque o pai não gosta
Letícia nem desconfia do real motivo da implicância do paiO comerciante tomou pavor deste tipo de enfeite desde que a criança foi encontrada semimorta, dentro da água, com uma tiara cor-de-rosa na cabeçaA menina também não consegue entender direito os olhares lançados a ela de soslaio pelas poucas pessoas que ficam sabendo do casoO assunto é tratado como segredo de família“Nós não damos entrevistaSó aceitamos conversar com a reportagem se você contar como ficou sabendo sobre a Letícia”, diz A., em tom de ameaça.

Os pais adotivos de Letícia vivem um dilemaJá está chegando a hora de contar à filha a história terrível que o mundo inteiro conhece de seis anos atrásNeste ponto, é preciso fazer uma pausaExplicar por que o casal concordou em dar sua primeira entrevista à imprensa“Já fizeram propostas para gravar programas, dar entrevistas a jornais e revistas do mundo todo
Se eu quisesse parar de trabalhar agora e viver da fama em torno da Letícia, eu poderiaMas adotei minha filha por amor e não por interesseGraças a Deus não preciso de dinheiro e mesmo que precisasse, não aceitaria”, pontua o comercianteEle mantém vida confortável, com duas empresas, casa própria, sítio e mais de um carro.

SEGURANÇA Os pais só aceitam falar com a reportagem com o compromisso de que os nomes serão trocados (Letícia era o nome de registro da menina pelo Juizado da Infância e da Juventude)Para preservar a segurança da família e da menina, também não foram permitidas fotosA expressão ‘menininha da lagoa’ foi usada pelo casal somente duas vezes durante a entrevistaEles então aceitaram contar a verdade sobre Letícia, do início até os dias de hojeComo tem dificuldade em reviver o assunto, a mãe vai embora na metade da conversa“Poderia ter adotado outra criança que não fosse a menininha da lagoaEsse fato é indiferente para mim, não me incomodaSó quero ter uma vida normal com minha filhaNão é nem por mim, é por elaSe eu pudesse, gostaria de apagar essa passagem da vida dela, mas não tenho como”, afirmaE acrescenta: "Deus sabe tudo e Deus pode tudoFalo sobre isso com a Letícia desde pequenaEla sabe que foi Deus quem me colocou na vida dela", afirma a mãe, evangélica.

Já o pai é católico e tem um lado mais práticoGuarda uma cópia do vídeo com a cena do resgate na lagoa em um cofre no banco“O dia em que ela quiser assistir, a cópia vai estar em segurançaMas ela já viu a reportagem sobre ela passando na TVFicou com dó da menininha, mas nem imaginou que pudesse ser ela própria”, revela o empresário, emocionado.

MENINA APRENDE A LER; JUIZ RECOMENDA CONTAR SOBRE ADOÇÃO

Espevitada, Letícia não para quietaCorajosa, não tem medo de pular bem alto no bunge jump e adora pegar onda no marNão ficou com trauma de água em função do que passou quando bebêSó parou com a natação por causa das crises de dor de ouvido, comuns nesta idadeAos 6 anos, ainda não decidiu o que vai ser quando crescerJá sonhou em ser bailarina e cogitou em ser policial com o objetivo de prender bandidos mausEntre seguir uma e outra carreira, o pai preferiria que a menina herdasse a empresa dele, pois ela tem talento para vendas Letícia completou 6 anos em 3 de novembroEntrou na idade de alfabetização, em que a capacidade de entender o mundo é ampliadaEstá aprendendo a ler“Entre 6 e 7 anos, quando se está saindo da educação infantil, é a idade média em que se deve revelar a adoção”, defende o juiz Marcos Flávio Padula, titular da Infância e da Juventude de Belo HorizonteFoi ele quem, na época, acompanhou o julgamento e assinou o termo de guarda da criança entregue ao casal Segundo Padula, a revelação tardia é um dos principais fatores da adoção que dá problemas no futuro.