Duas manifestações populares do distrito de Morro Vermelho, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ganham reconhecimento internacional. E “real”, já que vem da Espanha e tem o nome de Prêmio Rainha Sofia de Conservação e Restauração do Patrimônio Cultural, considerado um dos mais importantes da Europa. Na sétima edição da premiação, a Veneranda Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi destaque na categoria patrimônio imaterial pelo trabalho “de recuperar, preservar e divulgar a história de antigas tradições e festejos de Minas, por meio dos projetos Cavalhada Mirim e Aluá com as crianças”. Além da honra e da visibilidade, a tricentenária irmandade tem direito a um depósito na conta de 30 mil euros ou R$ 72,8 mil.
A data de entrega do Rainha Sofia, promovido pelo Ministério de Assuntos Exteriores e da Cooperação da Espanha, via Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, ainda não está marcada, mas o integrante da irmandade Charles Eládio Nazareth Faria já garantiu presença na solenidade, em Madri. E adianta que, em nome da mesa administrativa da associação, convidará a monarca para visitar Morro Vermelho, que fica a 12 quilômetros da sede municipal e tem suas origens no início do século 18. O local foi um dos palcos da Guerra dos Emboabas (1707 a 1709), conflito entre paulistas e forasteiros pelo poder e ouro na região das minas.
Formado em conservação e restauração, Charles conta que fez a inscrição em julho e ficou muito feliz ao ver o primeiro lugar entre 32 projetos de 11 países iberoamericanos, levando-se em consideração o objetivo dos organizadores de valorizar a integração de crianças e jovens da comunidade com a cultura e estimular a formação crítica e intelectual. Uma das maiores satisfações para os 800 moradores de Morro Vermelho foi saber que a cavalhada mirim e aluá com as crianças receberam unanimidade do júri.
A maior parte do dinheiro (80%) será empregada na conservação da Capela do Rosário, de 1703, uma das mais antigas de Minas, tombada pelo município, e o restante na continuidade dos dois projetos e na elaboração de novos. Diante da construção de linhas singelas, no alto de um gramado, Charles conta que a cavalhada mirim envolve 60 crianças de 4 a 12 anos e tem apresentações anualmente em outubro, na Festa do Rosário. “O modelo é a tradicional cavalhada do Morro Vermelho, que ocorre em 7 de setembro. Ao contrário de outras que recriam a luta entre mouros e cristãos, a de Morro Vermelho tem um significado de paz, pois encena, há 307 anos, a conversão de um embaixador mouro ao cristianismo”.
Caeté é uma das sete vilas do ouro de Minas e o arraial primitivo, que originou a sede municipal, se tornou Vila Nova da Rainha em 14 de fevereiro de 1714. Dos primeiros tempos em Morro Vermelho, bem mais antigo, vieram muitas delícias, entre elas o aluá, bebida sagrada dos escravos que trabalhavam na área de mineração nos tempos coloniais, e ainda servido na festa de Nossa Senhora do Rosário. O aluá – corruptela de “ao luar”, já que o preparo era sempre à noite, para fugir da vigilância dos feitores – tem registro desde a segunda metade do século 17. Pois a bebida resultou em uma cerimônia, atualmente realizada em outubro, e agora premiada na Espanha.
CAVALINHO DE PAU
É visível o entusiasmo dos integrantes da cavalhada mirim que, com seus cavalinhos de pau e adereços, trazem para o universo infantil o cenário dos adultos. O estudante Geraldo Magella Prado, de 16, participa do grupo desde os 4 e hoje ensaia a garotada nos fins de semana que antecedem a festa. “Os meninos chegam com a bandeira de Nossa Senhora do Rosário e bengalinhas de fogos de artifício”, conta o adolescente, que aprendeu o ritual com o irmão Cristiano, de 33. Em casa, Geraldo guarda todo o “arsenal”, roupas e objetos que são emprestados aos participantes, como o cavalinho de pau enfeitado com fitas, capacete e coroa com pedras. No fim da cavalhada, chamada de “corrida dos meninos” pelos moradores do distrito, os garotos se despedem da plateia com lenços brancos.
“A cavalhada mirim é como se fosse uma medida de salvaguarda do bem cultural do distrito, pois os jovens aprendem desde cedo o valor e o significado das tradições. No futuro, eles vão assumir o lugar dos mais velhos”, diz Charles. O aluá com as crianças tem o caráter de educação patrimonial, pois recria com desfile, cerimônia e distribuição da bebida o ritual dos adultos na véspera da festa de Nossa Senhora do Rosário no distrito histórico.