Para homens do Exército com experiência em missões humanitárias internacionais, que chegaram ontem para socorrer Guidoval, na Zona da Mata, a situação no município parece um “pedaço do Haiti” – país da América Central arrasado em janeiro de 2010 por um terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas e deixou 3 milhões de desabrigados. Na ocasião, a capital, Porto Príncipe, teve 80% de sua área destruída. Com a liberação nas últimas 48 horas de estradas vicinais pelos municípios de Visconde do Rio Branco e Rodeiro, jipes e caminhões carregados de ajuda não param de chegar à cidade destruída pelas águas do Rio Xopotó, que subiu 15 metros, causando verdadeiro tsunami de lama na cidade.
Pelo caminho de difícil acesso pela zona rural de Rodeiro – cerca de 15 quilômetros de barro –, a destruição impressiona os mais experientes agentes da Defesa Civil. São ranchos e casinhas simples em destroços, com cercas de arame farpado envergadas e troncos de árvores caídos. Imagina-se ao longo de todo o percurso a força da enchente de segunda-feira, que matou João Paulo Coelho, de 82 anos, afogado dentro de casa. Da estradinha, mal se vê a casa da vítima escondida pelo enorme bambuzal tombado.
Vencido o barro da estradinha, o cenário não é menos assustador. Caminhões e ônibus virados, com as latarias em pedaços. Tijolos de casas, muros e calçamentos revirados dão trabalho à população, que abre caminho para automóveis vindos das vicinais. Vindas da mina do falecido Landico Leratti, lendário fazendeiro da região, quatro meninas seguem para o que sobrou de suas casas. Natasha Pereira, de 11, Daiane dos Anjos, de 13, Mirela Aparecida, de 9, e Daniela Pereira, de 8, levam água para toda a família, que, mesmo em área pouco afetada, tenta retomar a rotina. O aposentado Luiz Antônio da Silva, de 54, confirma que não há em Guidoval uma só pessoa que não tenha sido afetada, direta ou indiretamente, pela inundação.
Duas mulheres vindas de lugarejos mais pobres, da parte alta de Guidoval, reviram destroços num canto de rua desfeita. Buscam qualquer coisa que possa ser reaproveitada: “Até um pedaço de pano serve”, diz a dona de casa Elzira da Conceição Almeida, de 53, moradora do Bairro Padre Baião.
A outra, Erotildes dos Santos, de 54, diabética e com problemas no coração, mãe de cinco filhos, conta que há muita gente de poucos recursos trabalhadora que vivia de “bicos” em Guidoval.Para a mulher magra, de aparência muito sofrida, a catástrofe de segunda-feira vai piorar ainda mais a situação de quem já vivia com muito pouco e, agora, sem “patrões” para quem prestar serviços. Elzira e Erotildes contam que, assim como elas, muitas outras pessoas pobres estão pelas ruas a catar restos por temer tempos ainda mais doídos. O que se confirma em outros pontos da área central.
“Moço, o senhor mexe com cesta básica?”, quis saber a negra bonita de roupas sujas. É Menilda Furtado Costa, de 25, embaladeira, que não sabe se ainda está empregada. O que sabe ao certo é que não tem mais um centavo no bolso e nada na casa alugada de número 623 na Avenida Trajano. Vestida de short jeans e camiseta surrada, mostra pequeno amontoado de dois metros quadrados com tudo que lhe pertencia, resultado de ano trabalhado em fábrica de móveis. Em casa, com um fogão de resto, nem um grão de arroz. “Minha maior preocupação é com a minha mãe, que dependia da minha ajuda para viver”, diz, com os olhos grandes alagados. Em cada canto, por todos os lados, há dramas intermináveis.
Represa causa medo
Na Praça Augusto Mendes, em Dona Euzébia, cidade-irmã de Guidoval, cerca de 500 pessoas se agruparam, ontem, em reunião de emergência com o Corpo de Bombeiros e com a Defesa Civil. O aviso é para que todos os moradores à beira do Rio Pomba fiquem longe de suas casas. O clima é de muita tensão com o risco de rompimento do açude da antiga usina de açúcar de Astolfo Dutra, município vizinho. Uma força-tarefa está trabalhando para o esvaziamento da represa que, se romper, vai pesar o equivalente a nove trombas d’água no Rio Pomba e, por consequência, arrasar Dona Euzébia. A previsão, segundo a Polícia Militar, é de que o trabalho de urgência acabe até amanhã. O município de seis mil habitantes, que, em 2008, se viu ao avesso com enchente, tem 993 desabrigados.
“Faz favor, senhor. Entre na minha casa. Veja isso...”, mostra Gilmar da Silva Machado, de 53, desolado com o que restou do patrimônio da família. A mãe do morador de imóvel à beira do Rio Pomba, dona Maria das Dores, de 79, sentada numa escadinha de ferro, come quentinha chegada há pouco pelas mãos de gente solidária. O pai, Manoel Machado, de 83, com Alzheimer, assiste a cena com olhar profundo. Gilmar está seguro de que, apesar do aumento da chuva nos últimos anos, não são as águas as únicas responsáveis pela situação em que se encontra Dona Euzébia. Para ele a Defesa Civil precisa acompanhar de perto o que está ocorrendo com as empresas que seguram as águas da parte alta da região. “Isso é muito grave. É muita gente que está correndo sérios riscos aqui na nossa cidade”. O desabrigado afirma que pequenas barragens na região estão contribuindo com as cheias dos rios Xopotó e Pombal.