Jornal Estado de Minas

A BH das 200 enchentes

Especialista atribui à ocupação desordenada e à falta de drenagem as sucessivas tragédias na capital desde 1923. Temor de todos os tempos, Ribeirão Arrudas ainda ameaça a população

Gustavo Werneck

  1987 Ribeirão Arrudas volta a sair do leito e a alagar casas e lojas, atingindo sobretudo as partes mais baixas da cidade, com prejuízos para moradores e comerciantes - Foto: Pedro Graeff/EM/D.A Press

Neste ano em que se completa um século de coleta de dados para previsão meteorológica na capital, os belo-horizontinos não param de olhar para o céu. E, claro, de ler os comentários dos especialistas do tempo, comentar com os amigos sobre a chuva da tarde e ficar bem atentos à nuvem mais escura. Realmente, as águas que descem sobre o estado são de meter medo e já entram para a história batendo recordes. Em dezembro, por exemplo, choveu 720mm em BH, mais do que o dobro da média (320mm), marcando o mês como o mais chuvoso desde 1912, quando ocorreu o registro pioneiro. Mesmo com o alerta dos meteorologistas, a cidade ainda é cenário de grandes inundações, desabamentos, tragédias e, principalmente, mortos e feridos.

O belo-horizontino ainda tem uma atitude muito passiva diante dessas catástrofes que ocorrem todos os anos - José Roberto Champs, engenheiro sanitarist - Foto: Beto Novaes/EM/D.A PressA primeira grande inundação na cidade ocorreu em 1923, provocada pelo transbordamento do Ribeirão Arrudas, informa o engenheiro sanitarista José Roberto Champs, ex-diretor da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) responsável por um levantamento sobre as enchentes e seus efeitos desastrosos. “De 1928 até agora, houve mais de 200 inundações”, afirma Champs, destacando que a situação não é culpa simplesmente do período de chuvas, que vai de novembro a março ou dos 1003 cursos d’água que cortam a cidade. “As inundações são fenômenos naturais, mas aqui houve uma ocupação urbana desfavorável à forma como a capital foi concebida. Não temos um sistema de drenagem eficiente”, afirma o engenheiro.



Com o crescimento da população, problemas de alto risco para a drenagem foram surgindo e gerando impactos, como a canalização dos córregos e a impermeabilização do solo. Nesse segundo aspecto, estão incluídos o asfalto das ruas, piso de cimento de quintais, telhado das casas etc., o que aumenta o volume do escoamento superficial e provoca o transbordamento dos córregos. “Falta uma política de gestão integrada, formada por órgãos municipais e estaduais, para fazer a gestão do sistema de drenagem”, adverte o especialista, lembrando que as cheias se tornam realmente significativas quando há risco para a vida humana, perdas patrimoniais, alagamento de vias públicas de grande volume de tráfego e de equipamentos urbanos.



Aniversário trágico

 

1979 Águas do Córrego Vilarinho alagam vários bairros na Região de Venda Nova - Foto: Celso Homem/EM/D.A Press


No verão, as águas não escolhem hora nem lugar para causar transtornos. E não perdoaram nem o aniversário de 80 anos de BH, em 12 de dezembro de 1977. Naquele dia, a população viveu momentos de pânico. Em 48 horas de chuva (174,2mm), houve nove mortos, 17 feridos graves, 23 desaparecidos e isolamento da cidade. Também em 1977, só que no início do ano, 915 pessoas ficaram desabrigadas, com desabamento de barracos no Bairro Salgado Filho. No ano seguinte, mais problemas. Em 23 de dezembro, as chuvas se tornaram históricas e atingiram BH. O aeroporto da Pampulha foi interditado e a água chegou a um metro no saguão.

O ano de 1979 também ficou marcado na memória de mineiros. Em 7 de fevereiro, foram abertas as comportas da Lagoa da Pampulha, provocando inundações em bairros à jusante e deixando muitos desabrigados. No dia seguinte, o Ribeirão Arrudas transbordou, carros foram arrastados, o Parque Municipal Américo René Gianetti, no Centro, ficou alagado, assim como lojas da Avenida dos Andradas. Nas imediações do Bairro Padre Eustáquio, as águas do Arrudas chegaram perto do quarteirão afastado 100 metros da margem.

“O belo-horizontino ainda tem uma atitude muito passiva diante dessas catástrofes que ocorrem todos os anos e são creditadas, equivocadamente, apenas o excesso de chuva ou acúmulo de lixo no sistema de drenagem. As soluções definitivas serão a longo prazo, mas é preciso planejamento.”

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, com a ampliação do sistema de drenagem na área central e expansão da cidade em direção às regiões periféricas, surgiram outros pontos críticos. “Ocorreram nesse período 69,5% das inundações”, conta o sanitarista. Quadro triste mesmo foi em 2 de janeiro de 1983, quando a favela Sovaco de Cobra, às margens do Arrudas, desapareceu. Até a Ponte do Perrela foi destruída. Um relatório apontou 51 mortos e, no fim de um mês, o número chegava a 70. Naquele ano, recorda Champs, começavam as obras na calha do Arrudas, que chega a ter 22m de largura por 9m de profundidade em alguns pontos. “A solução foi temporária, pois continua a haver transbordamento em bairros como o Salgado Filho.

Triste memória

 

O século 21 trouxe mais devastação, algumas gravadas em todas as gerações. Na madrugada de 16 de janeiro de 2003, chuvas fortes mataram 25 pessoas em Minas, causando destruição e desespero no Morro das Pedras, Cafezal e Taquaril. Na Vila Antenas, no Morro das Pedras, 11 pessoas da mesma família foram soterradas, morrendo nove crianças e adolescentes.


LINHA DO TEMPO

1912 –Feita a primeiras coleta para previsão meteorológica em Belo Horizonte, pelo Instituto Nacional de Meteorologia

1923 –Registro de grande inundação na Bacia do Ribeirão Arrudas

1977 –Em 12 dezembro, no aniversário de 80 anos da cidade, chuva provoca 9 mortes e deixa BH isolada do resto do país

1979 –Em 7 de janeiro, abertas as comportas da Lagoa da Pampulha, com inundação de áreas e grande número de desabrigados


1983 – Cidade vive uma das suas maiores tragédias, quando águas invadem favela Sovaco de Cobra, em BH, e deixa 55 mortos

1997 –Em janeiro, são registrados 66 mortos no estado, sendo 29 na Região Metropolitana de Belo Horizonte

2003 – Chuva na madrugada de 16 de janeiro mata 20 pessoas em BH e causa destruição nos aglomerados do Morro das Pedras, Cafezal e Taquaril

2011–Dezembro registra índice pluviométrico de 720mm e é considerado o mês mais chuvoso da história da capital


O belo-horizontino ainda tem uma atitude muito passiva diante dessas catástrofes que ocorrem todos os anos - José Roberto Champs, engenheiro sanitarist - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press
Outros tempos

Fúria da tempestade


“Todo jornalista tem uma história de chuva para contar. Não me esqueço de janeiro de 1998, quando Minas parecia derreter. Cheguei à redação do EM bem cedo e fui para a Região Norte de BH ouvir moradores, ver a lama entrando nas casas e as lágrimas das famílias. À noite, elétrico e exausto, peguei o carro e fui para casa em Santa Luzia, na Grande BH. Ao chegar lá, a cidade estava ilhada. Fui dormir na casa de amigos, no Bairro da Ponte, na parte baixa – e novo susto: acordei de madrugada, ouvindo gritos e com a cama balançando na água. A Rua do Comércio tinha se transformando em afluente do Rio das Velhas e os barcos já estavam na via pública. “Perigoso ter bicho peçonhento, hein?!”, alguém alertou. Chamei os donos da casa e disse para saírem, mas todos preferiram ficar. Sob chuva forte, dirigi até um hotel no trevo de Sabará, onde passei a noite. De manhã, olhei minha cara no espelho e vi o rosto de um flagelado. Entendi melhor o sofrimento e a aflição de quem perde tudo na enchente ou não pode voltar para casa, onde só consegui chegar dois dias depois. Mais triste ainda foi o resgate do menino Felipe, em janeiro de 2003. Vi o garoto saindo com vida dos escombros e fiquei esperançoso, até ouvir no rádio, na manhã seguinte, sobre a sua morte.”


Saiba mais

Plano reprovado


O engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito (1864-1929) é considerado o pioneiro da engenharia sanitária e ambiental e patrono desse setor no Brasil. Natural de Campos (RJ), ele trabalhou no plano de construção de Belo Horizonte, no fim do século 19, e propôs ao chefe da equipe, Aarão Reis (1853-1936), a construção de avenidas com 50 metros de largura e córregos abertos passando ao meio – eram as chamadas avenidas sanitárias. A boa ideia não foi aceita por Aarão Reis, diz Champs, certo de que teria sido uma ótima solução para evitar inundação em BH.

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