Jornal Estado de Minas

Anfetaminas e estimulantes alcoólicos são vendidos livremente às margens de rodovias

Em paradas nas rodovias mineiras, caminhoneiros admitem cansaço mesmo sob efeito de substâncias

Mateus Parreiras

Os rebites usados como estimulantes pelos caminhoneiros são comercializados abertamente em farmácias - Foto: Jair Amaral/EM/D.A Press/Reproducao

 

Medina – O assunto dos caminhoneiros no banheiro masculino eram as “raparigas” (prostitutas) que se ofereciam no pátio do posto de abastecimento da BR-116, em Medina, no Vale do JequitinhonhaEsbaforido, um jovem loiro de camiseta preta chega reclamando com dois conhecidos“Misericórdia, não aguento mais!”, grita“Tenho de chegar a Jequié (BA) hojeMinas pernas estão queimando no motorTô morrendo de sono e o rebite não está segurando”, reclama, sem pudor de falar sobre drogasMunido de rebites comprados de um prostituta, o rapaz sai do banheiro e se dirige para sua carreta bitremNão sem antes criticar uma reportagem na TV que mostrou a ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) multando quem sinalizava na estrada com os faróis avisando sobre as blitzes.

Nas paradas de apoio e postos de abastecimento das rodovias estaduais e federais mineiras, caminhoneiros conseguem com facilidade estimulantes que os permitam dirigir por mais tempoOs rebites, drogas à base de anfetaminas, são o recurso mais comum de quem precisa conduzir carretas com mais de 70 toneladas por mais de 24 horas“A droga é um estimulante do cérebro que aumenta os batimentos cardíacos e a circulação do sangueMas quando o efeito passa, a pessoa desacelera de uma vez e sente todo cansaço do esforço acima de sua capacidade”, alerta o psiquiatra Valdir Campos, coordenador do Ambulatório de Dependência Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

“Quem usa muito e se torna viciado não melhora nem se tomar mais doses, podendo dormir ao volante”, acrescenta.

O caminhoneiro S.S.P, que fazia a rota Feira de Santana (BA) – Pirapora (MG), admite que teve os reflexos alterados numa das vezes em que dirigiu sob efeito de rebite“Fiquei alucinado com os rebitesViajei por 24 horas e nem lembro por onde passei”, disseDe acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram apreendidos no ano passado em Minas Gerais 1.300kg de drogas (maconha, crack e cocaína) e 3.139 comprimidos de anfetaminas e outros medicamentos considerados "rebites"Comprar a droga não é difícilNas BRs 116, 135, 251 e 381 a venda dos produtos ocorre abertamente, por vezes promovida por frentistasUm dos focos mais evidentes desse comércio aberto é a pequena Frei Inocêncio, no Vale do Rio DoceCortada ao meio pela BR-116, a cidade de 9.246 habitantes tem seus principais estabelecimentos voltados para a estrada.

“Melhor que pinga”

A reportagem do Estado de Minas foi ao município e constatou como é fácil adquirir substâncias proibidasNo primeiro posto de gasolina, mais afastado, os frentistas disseram que não tinham mais o produto e recomendaram procurar nas farmácias da cidade pelo nome de “manipulado”A garçonete do posto, no entanto, oferece um “outro rebite”
Sem sair do balcão, alcança uma caixa repleta de tubos de um composto alcoólico chamado LigadãoO pequeno tubinho de 10 mililitros com um líquido marrom custa R$ 2,50 e é encontrado aos montes nas lixeiras, sobre balcões e mesas dessas paradas de carreteirosO teor alcoólico é de 13%, semelhante ao de alguns vinhos.

“É o novo rebiteOs caminhoneiros tomam para viajar quando não têm as pílulasÉ melhor do que pinga com guaraná, porque dá para jogar fora pela janela e beber muitos na viagem”, recomenda a garçoneteA venda e o consumo de bebidas alcoólicas em estabelecimentos às margens e na área de domínio de rodovias são proibidos, mas a polícia praticamente não interfere nessa atividade.

 

Confira vídeo com o flagrante da venda


Abusos podem levar à morte


A sonolência é apenas um dos efeitos dos rebites e outros tipos de substâncias sobre caminhoneiros que recorrem à química para viajar por mais tempoO uso frequente desses produtos causa dependência e pode levar à morte“Meu patrão, que era caminhoneiro antes de comprar a frota, chegou a ter quatro enfartes quando completou 40 anosTudo por causa dos rebites e do álcool que tomava para aguentar o tranco das viagens”, revela Simão (nome fictício), de 40 anos, outro caminhoneiro acompanhado pela reportagem do Estado de Minas pelas BRs 381 e 116“Em vez de ficar alerta, o caminhoneiro viciado terá sintomas prejudiciais, como cansaço excessivo, hipertensão, alteração da temperatura corporal, convulsão e problemas cardíacos, como infarto agudo do miocárdio”, enumera o psiquiatra Valdir Campos, do Ambulatório de Dependência Química da UFMG.

O abuso, garantem especialistas, leva também a atitudes descontroladas que podem resultar em acidentes mesmo quando o motorista não cai no sonoAs pupilas dilatadas permitem que mais luz entre nos olhosQuem roda à noite pode ter a visão ofuscada pelo brilho dos faróis de outros veículos, perdendo o traçado de uma curva, invadindo a contramão ou saindo da pista“Há pacientes que tomam 40 comprimidos de uma vezDependendo da dose, do tempo de uso e da situação, o caminhoneiro pode desenvolver sintomas que lembram a esquizofrenia paranoide, uma doença psiquiátrica em que o paciente se sente perseguidoAcha que estão atrás dele”, conta Valdir Campos“Por causa dessas sensações o sujeito toma decisões e atitudes intempestivas e arriscadasPior é que isso ocorre exatamente no momento em que está dirigindo uma carreta”.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o terceiro maior consumidor de anfetaminas do mundo, com média de dez doses diárias por mil habitantes, atrás apenas da Argentina e dos Estados Unidos, com 17 doses diáriasAlém de caminhoneiros, alunos que precisam estudar por mais tempo, candidatos a concursos e até adolescentes que querem ficar mais magros usam anfetaminas.

Numa farmácia em Frei Inocêncio foi possível comprar o produto chamado de “manipulado”O balconista não faz qualquer cerimônia“Temos do verdinhoCusta R$ 30 o frasco com 20 pílulas”, dizO rapaz vai até os fundos da farmácia e busca o pote de plástico embalado num papel cinzaNão há qualquer referência às substâncias contidas nas pílulas verde e brancas, suas indicações, contraindicações, data de fabricação e responsabilidade do fabricante, como manda a legislação que rege a manipulação de remédios em farmácias“É um produto irregular e ainda mais perigosoNão é como os rebites populares, geralmente inibidores de apetites ou anfetaminas para tratamentos de outras doenças que são desviados”, destaca o psiquiatra Valdir Campos.

Combate difícil

A Polícia Rodoviária Federal (PRF) admite ser difícil o combate ao comércio de drogas estimulantes usadas pelos caminhoneirosPrincipalmente porque “na maioria das vezes a venda é feita no varejo”, informou a PRF por meio de notaDe acordo com a corporação, fiscalizações ostensivas são feitas em todos os tipos de veículos, “inclusive com vistoria internaVárias operações e apreensões foram realizadas em 2011, em borracharias ou postos de gasolina”.

Para evitar a distribuição das drogas, a estratégia dos policiais é promover projetos como o Comando de Saúde nas Rodovias, que desde 2006 abordou 56 mil motoristas em Minas“O objetivo é alertar os condutores sobre os cuidados com a saúde”, informou a PRF.

Para o capitão PM José Procópio Corrêa Júnior, o grande volume de veículos pesados, somado à falta de segurança que os caminhoneiros têm para fazer paradas periódicas, contribuem para os índices altos de violênciaDe acordo com o militar, para combater abusos nas estradas e o uso de drogas como os rebites, é preciso mais denúncias