Uma solução à fila de mais de 27 mil pessoas que aguardam um transplante no país é a criação de um mercado lícito e regulado de órgãos e tecidos – um assunto polêmico, muitas vezes rechaçado, mas que vem ganhando voz por não deixar de ser uma alternativa às filas.
Um estudo que sugere a criação desse mercado no Brasil, feito por alunos do curso de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), recebeu prêmio internacional reconhecido na área – o da 19ª Jornada de Jovens Pesquisadores da Associação de Universidades Grupo Montevidéu (AUGM), realizado no fim do ano passado, no ParaguaiOs alunos integram o Grupo Persona, da universidade, que se debruça sobre pesquisas em bioética avançadaO artigo, desenvolvido por Daniel Ribeiro, Mariana Lara e Nara Carvalho, foi coordenado pelo professor Brunello Stancioli, que faz hoje pós-doutorado no Centro de Ética Prática da Universidade de Oxford, na Inglaterra, instituição interessada em desenvolver melhor a ideia do mercado lícito de órgãos no Brasil.
Por aqui, a maior fonte de órgãos vem de cadáveresO novo modelo poderia servir como um complemento, uma vez que também se aplicaria a doares vivosO formato final, contudo, não foi detalhado, mas seria uma espécie similar, no caso de Minas Gerais, ao da Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemominas), que recebe doação de sangue e faz a ponte entre o material doado e os hospitais do estado, embora não envolva dinheiro
No entanto, a proposta de um mercado lícito de órgãos e tecidos, hoje proibido por lei no Brasil, incomoda a comunidade médica, mas dá fio de esperança para quem há muito tempo espera uma respostaO estudo feito na UFMG aponta que a escassez de órgãos e tecidos humanos é questão a ser enfrentada pelo sistema de transplantes de qualquer país“Campanhas e incentivos à doação têm sido insuficientes para reduzir as filas de esperaParalelamente, a venda de órgãos e tecidos é colocada como problema a ser resolvido, e quase sempre pelo direito penalContudo, esse comércio, pensado nas bases de um sistema lícito, pode ser uma alternativa”, diz Stancioli.
REQUISITOS ÉTICOS
Para o professor, a maioria dos argumentos contrários à venda é de cunho moral e fortemente paternalista, visando proteger a pessoa de si mesma, embora haja requisitos éticos complexos que um mercado regulado deva atender“O debate acadêmico ético-jurídico-médico encontra-se bem desenvolvido em países como Inglaterra e AustráliaNo entanto, no Brasil sequer se cogita tocar no assunto”, pondera.
De acordo com ele, a venda de órgãos, pensada em outras bases, não deveria ser primariamente rechaçada“Um comércio de órgãos de pessoas vivas envolveria a possibilidade de que se possa vender órgãos considerados não vitais, aqueles sem os quais o doador pode continuar a viver”, diz
Stancioli pondera que não é apresentada razão pela qual se adota postura absolutamente contrária à criação do mercado legal de órgãos“Repete-se um discurso que condena o comércio de órgãos ao lhe atribuir supostos malefícios que parecem ser, na verdade, consequências da forma ilícita que ele assume hoje”, avaliaDurante o estudo, o grupo se deparou com informações que revelam que o mercado negro ou o tráfico de órgãos movimentam mundialmente mais de US$ 7 bilhões ao ano.
Expectativa
“O problema é mundial”, destaca o coordenador metropolitano do MG Transplantes, órgão em Minas responsável pela captação dos órgãos e tecidos, Omar Lopes Cançado JúniorA média de doação é Minas é baixaEm 2010, girava em torno de sete doadores por 1 milhão de habitantesEm 2011, subiu para 10,1A expectativa é chegar a 15 por 1 milhão de habitantesSão Paulo é o estado com o maior índice: 17 por 1 milhão de habitantes“Falta conscientização da população e dos próprios profissionais da saúde”, dizEle também não concorda com a criação de um mercado lícito de órgão e tecidos para reduzir a fila e o tempo de espera“Pela lei, já é um mercado inviávelA luta da área médica é sempre contra esse comércio.”
Ideia é desaprovada por associação
Embora a fila para um transplante seja grande, num cenário em que cresce o número de mortes violentas e pessoas com expectativa de vida maior, o presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), José Medina Pestana, desaprova firmemente a criação de um mercado lícito de órgãos“A população não quer, o que não impede a discussãoMas nós não aceitamos nem como uma sugestão razoável”, dizEle explica que, no Brasil, a doação de órgãos por pessoas vivas ocorre quando o parentesco com o paciente é de até o quarto grau, além do cônjugeFora isso, só com autorização judicial“Na maioria dos países é assim e, em todos os lugares, o transplante fora da família é bastante questionadoÉ um risco grande à vida, que só se justifica pelo afeto”, avaliaPara Pestana, a solução é avançar na possibilidade do uso animal, melhorar os equipamentos médicos e os tratamentos.
A doação no país – excluindo a possibilidade da própria família fazê-la – é somente de órgãos de cadáveres, autorizada pela família do doador, sem a necessidade de um documento assinado pela pessoa que veio a falecerA Espanha foi declarada líder mundial em transplantes de órgãos em 2010 com um taxa média de 32 doadores por milhão de habitantesA meta do governo brasileiro é atingir 15 em 2015O país, entretanto, é referência internacional na realização de transplante na rede pública de saúde – aproximadamente 95% das cirurgias são feitas de graça pelo SUSO investimento anual do Ministério da Saúde no Sistema Nacional de Transplantes é de cerca de R$ 1,2 bilhão.
A Política Nacional de Transplantes de Órgãos e Tecidos foi estabelecida e fundamentada pela Lei nº 9434/97, e tem como diretrizes a gratuidade da doação e o repúdio e combate ao comércio de órgãosToda a política está em sintonia com as Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90, que regem o funcionamento do SUS