Jornal Estado de Minas

Homens-bomba ao volante

Em vez de sono, caminhoneiros se valem de sexo e anfetaminas

Em pontos de apoio ou postos, caminhoneiros passam noites que deveriam ser de descanso embalados pela companhia de prostitutas e turbinados por drogas para vencer o cansaço

Mateus Parreiras

Shirley, como se apresenta a garota de programa que transita com desenvoltura entre motoristas, admite ter até 30 encontros por noite e fornecer tóxicos para animar clientes extenuados - Foto: fotos: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press



Montes Claros - Elas aparecem com o cair da noite, por entre labirintos formados pelas carretas estacionadas nos postos de abastecimento à beira das rodoviasMulheres de todas as idades e travestis que vivem em cidades cortadas por estradas se prostituem fazendo mais de 30 programas por diaOs clientes preferenciais são caminhoneiros, exaustos pelas horas ininterruptas de trabalho ao volante em carretas carregadas com várias toneladasMais do que fontes de diversão, as chamadas “raparigas” ou “quengas”, no linguajar dos carreteiros, fornecem drogas e estimulantes nos intervalos em que esses condutores poderiam descansarCompostos de anfetaminas - os chamados rebites - e drogas como maconha, cocaína e crack “turbinam” os programas rápidos, muitas vezes nas boleias ou nas esquinas sombrias dos estacionamentos.

De carona em carretas pelas BRs 040, 116, 135, 251 e 381, a equipe de reportagem do Estado de Minas encontrou várias dessas mulheres, muitas até menores de 18 anos, que têm lucro ampliado quando os caminhoneiros estão inebriadosA degradação nos postos, paradas chamadas pontos de apoio ou mesmo nas encruzilhadas das rodovias deixa ainda mais debilitados os homens que têm a responsabilidade de transportar cargas pesadas por estradas antigas, com traçados de mais de 30 anos e não inteiramente adaptadas às grandes carretas.

Com um meio sorriso e os olhos lânguidos de quem está sob efeito de drogas e álcool, de cabine em cabine, a prostituta Shirley (nome de guerra) diz fazer uma média de 30 programas por dia nos postos de combustíveis do entorno da BR-135, em Montes Claros, no Norte de Minas Gerais“O batente é das 18h às 6hCoisa rápida com cada umTem carreteiro do Brasil inteiro que para aqui (nos postos) sozinho e nos procura para fazer programa e comprar um rebite, cocaína ou crack”, afirmaA mulher cobra R$ 20 pelo encontro, mas admite que, se o cliente estiver com poucos recursos, reduz o preço para R$ 15As drogas são à parte
A comissão que recebe do traficante ela gasta para manter o próprio vício e bancar os rebites que a mantêm disposta a encarar 12 horas de programas com homens diferentes.

No Norte de Minas, um dos pontos mais movimentados é um posto da Avenida Deputado Plínio Ribeiro, um prolongamento da BR-135 na periferia de Montes ClarosEnquanto prostitutas e travestis se oferecem nos passeios aos caminhoneiros que se dirigem lentamente para o posto, em casebres arruinados da rua de trás funcionam bocas de fumo onde garotas de programa magras consomem crack em cachimbos, vendendo pedras para os motoristas que as pegam no asfalto.

Os rebites que os caminhoneiros tomam para tentar vencer o sono em suas viagens longas, de mais de 24 horas, também turbinam as prostitutas“Tomo um rebite e aí consigo virar o dia fazendo programa Os caminhoneiros aproveitamTomam um e aí podem até beber pinga e cerveja que mesmo assim não dormem na estradaÉ só tomar mais comprimidos depois do programa”, “receita” ShirleyEnquanto mulheres e travestis se prostituem, policiais circulam em viaturas de luzes giratórias vermelhas sem abordar ou mesmo intimidar ninguémNaquela noite, deram algumas voltas dentro do posto, cumprimentaram as profissionais do sexo e depois se foram.

A atividade na avenida é organizada por traficantes e cafetõesSe o caminhoneiro não quiser os serviços das prostitutas no caminhão, pode atravessar a rua e frequentar um bordel disfarçado de barEmbaixo funciona um boteco escuro onde ficam as mulheres e os homens que as exploram, de vigília, consumindo bebidas ao som de canções sertanejas
No segundo andar do sobrado há quartos pequenos e sujos, com camas cobertas por tecido manchado e desbotadoNo entorno, para quem não confia nas instalações, há opções de motéis e drive-insNesse caso, assim que terminam o programa as mulheres são levadas na garupa de motoqueiros de volta para a avenida, onde vão procurar mais clientes.

Vingança

Quem costuma atrapalhar a diversão dos motoristas são as mulheres traídas que vivem na cidade e aguardam o retorno dos maridos caminhoneiros depois de dias na estrada“Elas aparecem quando eles estão fissurados demais na droga para voltarUma vez, a mulher ligou no celular do caminhoneiroEle estava comigo e disse a ela que ainda ia demorarSó que ela estava do lado de fora, com um galão de gasolina, que jogou no caminhão e pôs fogoQuase não conseguimos escapar”, conta Shirley.

Entre as mulheres e os travestis que circulam nas motos e desfilam pela avenida se oferecendo há também adolescentes, de acordo com Shirley“Tem uma menina linda, de 16 anosOs caminhoneiros ficam loucos com elaMas a menina não fica na rua diretoTem de entrar no bar (prostíbulo)”, disseShirley conta que começou a se prostituir depois que o marido a deixou com um filho de 7 anos“Não tinha dinheiro para sustentar o meu meninoComo antes namorava homens de graça, pensei que não teria mal algum em cobrarNão quero deixar a vida”, diz.

Memória: Risco no retrovisor

Motoristas de carretas pesadas que cortam as estradas mineiras abusam de rebites e estimulantes à base de álcool e cafeína para conseguir rodar por mais de 24 horas seguidasEsse comportamento, somado às péssimas condições de manutenção dos veículos e à saúde precária dos condutores, levou os acidentes envolvendo veículos de carga a aumentar 132% na malha estadual mineiraAs nuances dessa situação alarmante são mostradas desde domingo pelo Estado de Minas, na série de reportagens Homens-bomba ao voltanteOs chamados rebites usados por esses condutores são medicamentos e produtos manipulados à base de anfetamina, droga sintética de efeito estimulanteA substância age acelerando o funcionamento mental e aumentando a liberação e o tempo de atuação de neurotransmissoresHá alteração nas funções de raciocínio, emoções, visão e audição, provocando sensação de satisfação e euforiaA pessoa sob o efeito de anfetamina tem insônia, perde o apetite, fica eufórica e com fala aceleradaAlém disso, apresenta irritabilidade, prejuízo de julgamento, suor, calafrios, dilatação das pupilas e pode sofrer convulsões