No livro Flores raras e banalíssimas, a escritora Carmen LOliveira descreve a intensa relação de Elizabeth e Ouro PretoA autora de One Art conheceu a antiga capital de Minas guiada pela companheira Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (1910-1967), conhecida como Lota e famosa pela construção do Parque do Aterro do Flamengo, no Rio de JaneiroCarmen escreveu: “Finalmente, Lota achou tempo para concretizar o sonho de Bishop: conhecer Ouro PretoSuspeitando o que deveria ser viajar no Brasil, Lota, habituée de Nova York, elaborou uma longa lista de apetrechos para garantir a viagem, de abridor de lata a zarabatana Mandou fazer uma revisão no Land Rover e pesquisou mapasConsultando uma amiga, que tinha acabado de vir de lá, soube que a nova estrada tinha ficado pronta”
E mais: “Se fossem de carro, o passeio seria muito mais aprazívelTransferiram a volumosa equipagem do jipe para o velho Jaguar e lá se foramApós alguns quilômetros de estrada nova, sob o céu maravilhosamente azul de Minas, Lota e Bishop embasbacaramA estrada tinha sido inaugurada, mas não tinha sido terminada! (…) Entraram em Ouro Preto à noite, arrastando em marcha triunfal o escapamento, desprendido num buracoPara Bishop, Ouro Preto compensou todas as agruras da viagem, que incluíram pneu furado e hotéis totalmente inadequadosBishop apaixonou-se pela cidade e partiu resolvida a voltar lá muitas vezes”.
O artista plástico José Alberto Nemer, nascido em Ouro Preto e residente em Belo Horizonte, conheceu a poeta, em 1968, num almoço na casa do artista plástico Carlos Scliar (1920-2001)Ficaram amigos íntimos e, mais tarde, Linda, sua irmã, também“Sei desse amor de Elizabeth pela cidadeEm 1953, ela enviou carta à amiga, de influência intelectual, Marianne Moore e falou da viagem, destacando que Ouro Preto era o único lugar do Brasil que desejava conhecer.” A paisagem, por sinal, mereceu o comentário: “As igrejas e capelas brancas, com detalhes em pedra-sabão de um cinza avermelhado, são excelentes na minha opinião”Quem visita a casa sabe que, de perto ou longe, é quase uma poesia barroca, pela arquitetura e integração à paisagem
Casa Mariana
Nos primeiros anos, em Ouro Preto, a poeta se hospedava no Pouso Chico ReiNemer não se esquece do verso bem-humorado que Elizabeth fez“Fica para Shakespeare e Milton, o HiltonEu ficarei no Chico Rei”, numa referência à rede de hotéis e à pequena pousadaCom o tempo, veio a vontade de ter um pouso definitivo e surgiu, em 1965, a oportunidade de comprar aquela que se tornou a Casa Mariana, nome em homenagem a Marianne Moore (1887-1972) Como o imóvel precisava de restauração, a amiga Lili Correia de Araújo, viúva do pintor pernambucano Pedro Corrêa de Araújo, dono de algumas casas na cidade, ficou encarregada de supervisionar as obras
Em carta a um amigo, conta Nemer, Elizabeth disse que “a casa tem o telhado mais bonito da cidade: é como uma lagosta emborcada com a cauda curvada em ângulo reto, onde fica a cozinha”“Aliás”, acrescenta o artista plástico, “era ali que ela fazia, com alegria e métodos precisos, pratos deliciosos, como as abobrinhas ao forno, lombo com purê de maçã verde, geleia de laranja e conserva agridoce de legumes em seu banho de mostardaEssa inigualável.” Depois da morte trágica de Lota, por suicídio, a poeta passou a ficar mais na Casa MarianaEm Ouro Preto, adorava contemplar a fachada da Igreja de São Francisco, obra de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814).
Nemer diz que, a partir da morte de Lota, houve uma fase muito dura“Ela teve que enfrentar, além da perda, problemas de herança e o julgamento de parentes e amigos de LotaÀs vezes, eu tinha a impressão de ver em Elizabeth uma pessoa ferida de morteFalava pouco sobre o assunto, o suficiente para eu saber do que se tratava, mas suas crises de tristeza e depressão eram de tal forma dilacerantes que não precisava dar nome aos sentimentosMais dramáticos quando associava a depressão ao álcool Passava dias seguidos trancada em seu quarto, sem ver ninguémRia e chorava ao mesmo tempo, em delírios, dia e noite.” Com a casa restaurada, em 1974, a norte-americana resolveu se estabelecer novamente no seu país.
O prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, conheceu Elizabeth e publicou, em 1971, um poema dela no Suplemento Literário que editava no Minas Gerais“Bishop escreveu pouco sobre a cidade, era mais atenta aos flagrantes inusitados do cotidiano do que à monumentalidade da capital do ouro.” Num deles, descreveu uma cena vista da janela (veja o texto)E No livro Esforços do afeto dedicou uma prosa a uma Ida ao botequim.
Catando o português
Sempre ao lado de Elizabeth e sem falar inglês, Nemer e Linda se comunicavam com ela em português“Tinha um jeito muito bem-humorado e especial de falar a nossa língua, como se fosse catando as palavras com precisão Era uma pessoa divertida, perspicaz, reservada, seletiva, com uma visão surpreendente do mundo e um olhar para o insólito do cotidiano”, recorda-se
Quando conheceu a poeta, Nemer era muito jovem e, embora não lesse inglês nem conhecesse sua poesia, podia sentir a dimensão de seu talento nas sutis observações“Alguns desses insights, de tão sensíveis, poderiam ter virado poema escritoÉ o caso do comentário que fez sobre uma lamparina de querosene sobre a lareira da Casa Mariana – um trabalho popular e artesanal, usando o bojo de uma lâmpada queimada, sustentada por alças de lata recortada e terminando com uma tampinha de garrafa de onde saía o pavio‘Agora sei por que gosto tanto desse objeto; quem fez isso quis ressuscitar a luz da lâmpada’.”
Escritora nobre
Elizabeth Bishop era filha de William Thomas Bishop, que morreu antes de ela completar um ano, e de Gertrude Bulmer Bishop – com transtornos mentais, foi internada num hospital psiquiátrico quando a menina tinha 5 anosA família materna a levou para viver em Great Village, na Nova Escócia, no CanadáOs primeiros poemas, muito influenciados por Marianne Moore e outros escritores, surgiram na revista do Vassar College, nos EUA Depois da rejeição de alguns editores, teve o primeiro de seus volumes de poesia (Norte e Sul) publicadosCom ele, ganhou o Prêmio Pulitzer Ao longo da vida, vieram muitas outras premiaçõesQuando da publicação de Norte e Sul, o mais importante crítico nos EUA, ARandall Jarrell, escreveu que “todos os seus poemas, como percebi, têm uma segunda escrita”Em 1979, Bishop ganhou o National Book Award (Prêmio Nacional do Livro), um dos mais importantes da literatura em língua inglesa.
Pela janela: Ouro Preto
Mulheres de vestidos vermelhos
e sandálias de plástico, carregando bebês
quase invisíveis – agasalhados até os olhos
naquele calor todo – desembrulham-nos, abaixam-nos,
e amorosamente lhes dão de beber
nas mãos sujas, ali onde costumava haver uma fonte,
e onde todo mundo ainda costuma parar