Somos mais de 6 bilhões de seres no planeta. Todos temos alguma necessidade especial. Se não é física, é de ordem econômica, social, espiritual moral ou política. Quem nos socorre? Eventualmente, um amigo, uma amiga; o companheiro, a companheira; ou um parente. Isso eventualmente. E sempre, qualquer hora, em qualquer dia? Só as raras pessoas também especiais, que vivem o mundo de todo mundo. Indo atrás de uma dessas raridades, encontramos Sônia Bitencourt Vieira, um senhora jovial de 71 anos, que, de tão envolvida com o próximo, precisou de um tempo para redescobrir a própria identidade.
No universo de Sônia há crianças que chegaram a ela carentes de boa alimentação, educação e lazer; há jovens e adultos necessitados de fé, calor humano e de orientação para se reencontrar ou para não cair em desespero diante das mazelas deste mundo. Viúva, mãe de quatro filhos - três mulheres e um homem -, com seis netos e um bisneto, não aparenta ter 71 anos e nem tem receio de revelar a idade. "Sem problema, estou na ativa." Dona de casa desde que se casou, sentiu, um dia, necessidade de ser útil não apenas à família. E foi atrás de pessoas. "Eu sentia um vazio e precisava preenchê-lo."
Ela mora numa casa modesta, mas agradável, em Santa Luzia, Grande BH, com a cadela Mel e o irrequieto Chuí, cachorro de pouco mais de um quilo de raça indefinida, o guardião do quintal. "Os chamo de a dama e o vagabundo", diz com um agradável sorriso. "Nasci em BH e morava no Barreiro. Há 44 anos, quando me mudei para Santa Luzia, senti essa vontade. Pensei: 'Deus não me criou para ser somente dona de casa'. E fui atrás das pessoas, das mais necessitadas. Juntei crianças e adultos. Nos encontrávamos na rua mesmo e levávamos uma mensagem de consolo e de esperança. Aos poucos, foi chegando gente, chegando gente, e não demorou para formarmos um grupo de auxílio."
Doação
Com tantas pessoas envolvidas, era preciso um espaço digno para se reunir. Quatro anos depois, ou há quatro décadas, nascia, no bairro luziense de Nossa Senhora das Graças, a Casa de Caridade Espírita Nosso Lar. Sônia é espírita, kardecista. O terreno, o marido, que era funcionário administrativo da Usiminas, comprou e pagou com sacrifício. O material foi doado e as paredes erguidas em mutirão. Aos sábados é servido um sopão, das 9h às 11h30, e há reuniões com as famílias. Além das mensagens, há cursos, principalmente para gestantes. Durante a semana, as crianças passam o dia na Creche Maria Salomé, no Bairro Boa Esperança. Lá, elas têm educação, orientação espiritual e cívica, alimentação e lazer . "Ganhamos o imóvel em 1980, e novamente em mutirão fizemos as adaptações necessárias. Hoje, cuidamos de mais de 80 crianças."
Para atender o número cada vez maior de pessoas, foram grupos de apoio com coordenadores e por pessoas treinadas. "Além disso, participo como voluntária de uma oficina de costura. Fazemos travesseiros, tapetes e outros utensílios, tudo com material doado. Hoje meu universo espiritual é cheio de pessoas. Atendemos crianças, filhas de pessoas que estiveram e que ainda estão conosco. A gente recebe mais do que dá. Hoje eu me sinto viva, aquele vazio desapareceu. Na verdade, encontrei nas pessoas necessitadas o que eu precisava. Que bom encontrar uma pessoa na rua para nos dizer: 'Como me fez bem aquele presentinho que vocês me deram quando nada tinha ou nada ganhava'."
Nancy dos Santos Torres, de 51, funcionária de uma academia em Santa Luzia, conhece bem as ações de Sônia Bitencourt. "Tenho dois filhos, um de 30 anos e outro de 25, e uma filha de 21. Todos foram criados na creche de dona Sônia. É muito difícil para mim expressar o que ela representa. Na homenagem feita a ela há pouco tempo na Casa de Caridade Espírita Nosso Lar, eles foram agradecê-la e ela chorou. Dona Sônia faz parte da minha família, da minha vida. Cada dia que ela vive é uma mensagem para mim."
Reencontro em Compostela
Sônia passou a se realizar no sorriso das pessoas que ajudou. Assim, aos poucos, foi perdendo a identidade. "Aos 58 anos, senti necessidade de me reencontrar, descobrir quem realmente era." Por meio de um genro, agente de viagens, soube que um padre recrutava voluntários para trabalhar como hospitaleira nos caminhos de Santiago de Compostela. Sônia enviou uma mensagem contendo seu perfil e foi aprovada. Com a ajuda do genro para custear a viagem, embarcou para a Espanha. Mas, em vez de se redescobrir, achou foi mais trabalho para ajudar o próximo.
"Não sei falar uma palavra de inglês. Mal, mal arranho um portunhol.Fiquei em uma das hospedarias, cozinhando e lavando para os peregrinos, e me saí muito bem com alemães, japoneses, gente de todas as partes do mundo. Em me comunicava com eles com as mãos, com o coração. O coração é universal." Foram dois meses de dedicação. "Eles queriam que ficasse mais, mas meu marido e meus filhos não deixaram. Não ficariam sem mim."
Quando fez 60 anos, Sônia resolveu voltar a Santiago de Compostela, dessa vez como peregrina. "De um percurso de 800 quilômetros, caminhei 780 e fiz o restante de ônibus porque não aguentava mais andar. Aí, sim, me reencontrei. Descobri uma mulher alegre, com muita vontade de viver. Hoje, além de ajudar as pessoas, faço hidroginástica, toco teclado..." A força de Sônia vem da persistência. "Se recebo uma mãe que sofre com um filho ou um marido drogado, digo a ela para não desistir nunca. E tenho exemplos de pessoas que se recuperaram porque não foram abandonadas".