Os homens e seus facões chegaram na frente, abrindo picadas na mata e seguindo os rios em busca do ouro – isso foi lá pelos fins do século 17. Depois vieram os muares (mulas e os burros), comandados pelos tropeiros pioneiros, para trabalhar na região das minas, carregar mercadorias e garantir o abastecimento da população que não parava de crescer. Há 280 anos, o português Cristóvão Pereira Abreu saía do Sul da colônia com 3,5 mil animais e 132 homens para dar início a uma atividade que se confunde com a história de Minas. A viagem até Ouro Preto, ex-Vila Rica, onde Cristóvão tinha uma filha casada, durou um ano. Já em 1735, ganhava força o transporte de carga entre o Rio de Janeiro e a capitania de Minas.
“O tropeirismo unificou o país e trabalhou para o seu desenvolvimento. Muitas cidades mineiras nasceram em volta dos ranchos ou acampamentos, onde os homens paravam para descansar”, conta Eleni Cássia Vieira, diretora do Museu do Tropeiro, cartão-postal do distrito de Ipoema, em Itabira, na Região Central. A instituição, vinculada à prefeitura local, completa nove anos no dia 29 e terá programação festiva no dia 31, com shows, chegada de 1,5 mil cavaleiros de várias cidades e barraquinhas.
Quem anda pelos grotões das Gerais ainda encontra um ou outro tropeiro subindo montanhas, com poucos animais, numa situação bem diferente dos séculos 18 e 19, quando eles dominavam a paisagem de Norte a Sul para abastecer áreas centrais com querosene, tecidos, peixe salgado, sal, roupas, vasilhames e outros produtos. “O Brasil pode ser dividido entre antes e depois dos tropeiros, que eram homens empreendedores e funcionavam até como correio. Na verdade, eram o “Sedex” da época”, compara Carlos Roberto Solera, presidente do Núcleo de Amigos Terra e Água (Nata), organização não governamental de Curitiba (PR) empenhada na defesa da atividade.
“Queremos ver o tropeirismo reconhecido como bem imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco)”, diz Solera, que vem trabalhando, dentro do projeto Tropeiro Brasil, em parceria com o museu de Ipoema e a Universidade de Girona, na Espanha, onde há um curso de turismo cultural.
Mas, afinal de contas, quem eram esses homens desbravadores, aventureiros, dispostos a cruzar rotas extensas e enfrentar perigos? Eleni explica que os tropeiros não eram apenas comerciantes, mas gente de fibra. “Movimentavam a economia por onde passavam, já que, para dar manutenção às tropas, surgiam nas estradas ferreiros, seleiros, domadores, donos de lojas de secos e molhados etc. Hoje, seriam como donos de frotas de caminhões, que precisam de oficinas mecânicas e postos de gasolina nas rodovias para não perder a viagem”, diz Eleni, neta de Carlos Dias Filho, que se orgulhava do “profissão: tropeiro” no título de eleitor, impresso no início do século passado.
Poesia e prosa
A diretora do museu lembra que muitas expressões nascidas no dia a dia dos grupos caíram na boca do povo e são usuais até hoje. “Quem nunca deu ‘com os burros n’água’, quando algo dá errado, ou não ‘empacou’ diante de algum perigo?”, pergunta com bom humor. A literatura também gerou muitos frutos em verso e prosa e o itabirano Carlos Drummond de Andrade (1912–1987) não poderia fugir à regra. No poema Privilégio, escreveu: “Chicote de cabo de prata lavrada/chicote de status não fica entre os outros de couro e madeira plebeus/É guardado à parte/zelado ao jeito dos bens de família/Não risca no flanco de qualquer animal”. Já um autor desconhecido descreveu como eram a vida e as urgências de um tropeiro: “1) Estou de passagem com tempo limitado de permanência. 2) Não compro nem vendo a prazo. 3) Não compro nem vendo animais com defeito ou com mais de 10 anos. 4) Só compro de quem quer vender. 5) Só vendo para quem quer comprar. 6) Só troco com quem quer trocar. 7) Só negocio na presença do sol. Grato aos homens e a elas o meu bom dia”.
Pesquisando o assunto há anos, Eleni encontrou características marcantes do cotidiano dos viajantes. “Os donos das tropas gostavam de andar bem vestidos, elegantes, mesmo percorrendo longos caminhos. E como passavam meses fora de casa, namoravam muito e se mostravam festeiros por excelência”. Sobre esse quesito, uma moda de viola dá a dica às mulheres para não se apaixonarem por aquele tipo de homem: “Maria, por caridade/Não ama tropeiro, não/tropeiro é ‘home’ bruto/bicho sem combinação/Maria, escute o conselho/sossega seu coração”. Mas Eleni afirma que a turma era de paz, pois brigões não teriam vez num setor em permanente movimento. Se por acaso arrumassem confusão num pouso de estrada, teriam problemas de hospedagem na próxima viagem.
Outra forte marca dos tropeiros estava na religiosidade. “Não viajavam em dias santos, o que seria um desrespeito a Deus. E se estivessem numa vila ou povoado, assistiam à missa aos domingos”, conta Eleni, destacando que gostavam de musicalidade, poesia e dança e davam as notícias em primeira mão. Honrar compromissos financeiros era sagrado. “A palavra valia ouro e tudo era feito no ‘fio do bigode’, o que se traduz por falta de papel e testemunha. “ Solidariedade era outra características dos grupos. Quando saíam do rancho, deixavam madeira para o próximo grupo, garantindo lenha para a fogueira por muitos dias”, diz. No século 19 com as ferrovias e no seguinte com os caminhões, a atividade entrou em decadência, mas deixou legado que encanta e mostra os tempos de um outro Brasil.
Saiba mais: retratos e moda
Quem visitar o Museu do Tropeiro, em Ipoema, poderá ver duas exposições. Com um olhar delicado e fortemente revelador, o fotógrafo da terra, Roneijober Andrade, apresenta a mostra Ruralidades – Retratos do tropeirismo no torrão rural itabirano, registros em preto e branco das atividades dos tropeiros do século 21. Em outro espaço do casarão do século 19, os visitantes vão descobrir O que é que tem nesta canastra?, uma interpretação muito criativa, sobre o mundo do tropeirismo, a cargo da coordenadora do curso de design de moda da Universidade Fumec, Gabriela Torres, e da aluna Maria Rita Vieira, de BH. Um vídeo com duração de cinco minutos, projetado na parede, traz imagens e histórias locais. O museu fica na Travessa Professor Manoel Soares, 217, Centro. Telefone (031) 3833-9254. Aberto de terça a sábado, das 8h30 às 12h e das 13h às 17h. Domingos e feriados, das 9h às 12h e de 13h às 16h30. Entrada gratuita.
A força da palavra
Ditos de tropeiros que se tornaram populares
Dar com os burros n’água: significa que algo deu errado – perder um negócio ou fazer asneira
Quando um burro fala o outro murcha a orelha: semelhante a “quando um fala o outro se cala”
Picar a mula: ir embora. Quando o tropeiro voltava para casa, costumava vender os muares em lotes, “picando”, então, a tropa
Cor de burro fugido: aquilo que não tem cor
Teimoso feito uma mula: os muares conhecem bem o chão onde pisam, então se o caminho está perigoso empacam, ou seja, não seguem
Linha do tempo
Século 17 – Descoberta do ouro pelos bandeirantes atrai a Minas gente de todo canto, da colônia e de Portugal. Com o tempo, população precisa de transporte e abastecimento
1732 – Saída do Sul do Brasil em direção a Minas da primeira tropa (132 homens e 3,5 mil muares), sem carga ou xucra, sob o comando do português Cristóvão Pereira de Abreu
1733 –Depois de um ano de viagem, tropeiros sob o comando de Cristóvão Pereira de Abreu, chegam a Ouro Preto
1735 – Começa o transporte de carga, no lombo de muares, do Rio de Janeiro para Minas, numa viagem que durava 90 dias
Século 19 –Com a circulação dos trens de ferro e no século seguinte dos caminhões, o serviço dos tropeiros entra em decadência
2003 –Em 29 de março é inaugurado o Museu do Tropeiro, no distrito de Ipoema, em Itabira
2011 – Em outubro, é realizado o I Seminário Internacional de Tropeirismo, em Ipoema