Um castelo com seis torres, com um carro pegando fogo na garagem e esgoto do lado de fora das muralhas, é o sonho de moradia de F.S., de 5 anos. O desenho foi feito em papel branco sobre o chão de ardósia da recepção do Conselho Tutelar Centro-Sul de Belo Horizonte, enquanto em companhia de um primo aguardava o atendimento da mãe R.S., de 23. Depois de duas horas e meia de espera, ela foi chamada para explicar a denúncia de abandono de incapaz, feita pela sogra contra ela. No início da tarde dessa quinta-feira, este e outros quatro casos desafiaram o órgão, considerado pronto-socorro no atendimento de violações do direito da criança e do adolescente. “O movimento é grande e o tempo está apertado”, diz o conselheiro Ronaldo de Jesus Ferreira. Para aliviar a demanda e cumprir determinação nacional, o número de conselhos tutelares na capital deveria saltar de nove para 24.
A Resolução 139 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), publicada em fevereiro de 2011, determina que o município deve ter um conselho tutelar para cada grupo de 100 mil habitantes. Com uma população de 2,37 milhões de pessoas, Belo Horizonte deveria ter portanto 24 conselhos tutelares, bem mais que o dobro que tem hoje – um para cada uma das nove regionais. No último ano, nada foi feito. “Por enquanto, a PBH não tem planos em aumentar o número de conselhos tutelares”, afirmou a assessora do gabinete da Secretaria Municipal de Políticas Sociais Carla Machado, ex-presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, que trabalha na área há 29 anos. Ela considera que um conselho por regional é o suficiente. “O número de atendimento é alto, mas a estrutura que tem dá conta”, diz.
Em 2011, foram registrados 25.388 atendimentos, cerca de 70 por dia, nos nove conselhos da capital. Não há dados anteriores que permitam comparar a evolução da demanda. Cada conselho tem cinco conselheiros, o mínimo do exigido por lei, que se revezam nas escalas de atendimento em horário comercial e em plantões noturnos (das 18h às 6h) e nos fins de semana. Somente nesses plantões foram feitos 1.066 atendimentos no ano passado.
Determinação
A questão não é, porém, se a prefeitura considera suficiente ou não, destaca a presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Miriam Maria José dos Santos. Ela diz que como o Conanda é um órgão deliberativo de políticas na área infanto-adolescente, determinado pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as resoluções têm caráter normativo e devem ser cumpridas. “Não se trata de uma recomendação, mas de uma determinação. Belo Horizonte está descumprindo uma diretriz nacional”, afirma.
O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Jovem e Idoso da seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil (Caji/OAB-MG), Stanley Ramos Gusman, avalia que o número é deficitário, mas que há brechas na Resolução 139, que permite a interpretação de que é opção do município atender a indicação. “Um conselho a cada 100 mil habitantes visa à obediência do princípio da equidade de acesso à política pública. Na minha ótica, 50 conselhos seriam pouco para atender a grande demanda da capital, referência de uma região metropolitana de mais de 5 milhões de pessoas”, afirma.
Agressão
Quem não cumpre as determinações, como é o caso de BH, está sujeito a penalidades, decididas pelo Judiciário. “Cabe aos conselhos de direitos, ao conselho tutelar ou a qualquer cidadão requerer ao Ministério Público, ao Executivo e ao Legislativo municipais as medidas administrativas e judiciais cabíveis, para que a resolução seja cumprida”, diz. Para ela, se não há conselho tutelar no município, quem enfrenta os problemas são as crianças e adolescentes, como os que estavam na tarde dessa quinta-feira no Conselho Tutelar Centro-Sul. Todos os problemas registrados na região, independentemente se o jovem é morador da área ou se vem de outros municípios, terminam ali.
A.G., de 16 anos, agredida pela irmã em casa, no Bairro Serra, Região Centro-Sul, foi levada ao conselho pela Polícia Militar como medida de proteção. “Ela achou que eu estava falando mal dela e começou a jogar em mim tudo que estava na frente até que pegou uma faca e começou a me ameaçar. A minha madrinha ligou para minha mãe, que estava no trabalho, e que ligou para a polícia”, conta. Segundo ela, a irmã disse na frente dos policiais que, quando eles fossem embora, ela voltaria a atacá-la. Diante disso, A.G. foi encaminhada ao conselho, onde ficou esperando a mãe, que deveria buscá-la e assinar termo de responsabilidade.
Palavra de especialista: ARIEL DE CASTRO ALVES, presidente da Fundação Nacional da Criança da OAB
Deficiência na infraestrutura
É raro o município que cumpre a resolução do Conanda, o principal órgão que garante os direitos da criança e adolescente. O problema, além de quantitativo, é qualitativo. A infraestrutura, na maioria das vezes, é precária: faltam telefone, computador, internet, veículos, auxiliares. A remuneração dos funcionários é irrisória. Tudo isso colabora para o atual quadro de vulnerabilidade. Seria fundamental que os promotores da infância e da adolescência propusessem ações exigindo a garantia do funcionamento adequado dos conselhos, desde a questão da proporção até a eficiência da rede de proteção, que inclui a disponibilidade de abrigos e de atendimento à saúde.