Nas mentes mais maduras, nem sempre a viagem do crack tem voltaOs primeiros sinais do envelhecimento dos usuários da droga servem como alerta para as autoridades, devido à rápida dependência provocada por ela e ao alto grau de demência em função da destruição irreversível dos neurôniosEm outras palavras, o uso do crack “frita o cérebro”, no jargão dos viciados na pedra“O prognóstico das pessoas com mais idade piora muito, porque elas já tendem a uma perda de neurônios com o processo natural do envelhecimentoNesses casos, o efeito do crack é mais deletério”, compara o psiquiatra e homeopata Aloísio Andrade, presidente do Conselho Estadual sobre Drogas.
“O enfrentamento do crack na terceira idade é uma questão de saúde pública”, defende a gerontóloga Viviane Café MarçalEla lembra que se uma pessoa com mais de 50, 60 anos cair e fraturar um braço durante o desequilíbrio da paranoia do crack, isso terá consequências mais graves do que na infância, em que na maior parte das vezes basta enfaixar o braço“Bem, os gastos somam R$ 8 mil em média para sete dias de internação de um idoso que sofreu uma queda leve”, comparaO aumento do uso do crack por pessoas mais velhas poderá obrigar à criação de uma comunidade terapêutica voltada para a permanência de idosos que queiram se livrar da dependência química em drogas“É um recurso caro, que pressupõe outro tipo de profissional de saúde, corrimão, piso diferente e a presença de um geriatra capaz de fazer a combinação de medicamentos”, compara.
Diferentemente da maconha, usada nos anos 1970 para ampliar a consciência e aumentar a percepção, o crack atua no sentido opostoSua mistura serve para entorpecer os sentidos, anestesiar“Se usam a maconha para sentir, o crack é para não sentir nada”, afirma Aloísio Andrade
Não existe fórmula pronta para dar sentido à vida, mas Aloísio Andrade recomenda criar vínculos de amizade ou de interesseComo se diz por aí, inventar boas modas, aprender a tocar um instrumento ou usar o computador, fazer esporte ou cultivar orquídeas, inscrever-se em um serviço voluntário ou reativar a associação do bairro ou da rua“O problema do Brasil é que envelhecemos muito rápido, em 40 anos, enquanto a França levou 150 anos para realizar o mesmo processoNo Japão, os cidadãos já sabem que serão longevos e planejam desde cedo a renda futura, o hobby e sua terceira ou quarta profissão”, exemplifica Viviane Marçal.
Problema reconhecido
“Reconhecemos que o problema existe e que o uso de drogas na terceira idade cresceu na última década no país”, diz Cloves Benevides, subsecretário de Políticas sobre Drogas de Minas, vinculado à Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds)Ele se mostra especialmente preocupado com o crescimento da presença de pessoas mais velhas nas cenas urbanas associadas ao uso do crackNas cracolândias o nível de degradação, sujeira e violência é alto“Os idosos já são mais vulneráveis, e com o uso da droga tornam-se mais passíveis de sofrer agressõesA situação é grave”, diz.
Identificada a raiz do problema, a subsecretaria prepara ações de prevenção para enfrentar o drama do envolvimento dos idosos com o crackPara o segundo semestre, Benevides anuncia jornadas de capacitação de profissionais que atuam nos serviços de assistência social para lidar com o novo perfil dos usuários“Se o paciente mais velho já tem um quadro de alcoolismo, é preciso uma atenção especial para ele não saltar mais um degrau”, alerta o subsecretário, que pretende estender o programa aos policiais do Grupamento Especializado em Policiamento de Áreas de Risco (Gepar), responsáveis pela ronda nas cracolândias.
Me viciei da primeira vez
“Nunca tinha experimentado droga, mas o efeito do crack foi devastador
Antônio, de 54 anos, vendedor autônomo
Estou andando na luz
“O crack não discrimina ninguémAté pessoas milionárias estão mexendo com issoElas estão saindo do pó e entrando na pedraEu fiquei no meio das pedras e acabei escorregando nelasQuase caí na sarjetaPerdi esposa, minha oficina mecânica, os dentes e a dignidadeA primeira pedra custa baratoO problema é que seu efeito dura meia hora e dali a uma hora o cara quer outraEle está na fissura e faz qualquer coisa pelo crackCheguei a trocar uma TV por cinco pedras, que valiam R$ 50Só não virei mendigo porque tenho dois filhosUm dia fui chamar a atenção do meu mais velho, de 17 anos, e ele disse que eu não tinha mais moral para falar como paiUma semana depois, parei com tudoSobrou só o cigarroFaço questão de dar esse depoimento porque não quero que nenhum ser humano passe pelo que eu enfrenteiA sociedade apaga quem mexe com crackEu saí das trevas e estou andando na luz.”
Antônio Henrique, de 54, ex-dono de oficina mecânica e músico
Vou deixar essa vida
“Comecei a usar maconha há 19 anos porque tinha uma úlcera brava e não conseguia comerDisseram que fumar baseado dava muita fomeNunca mais parei com as drogas e experimentei de tudoConheci o crack com um amigo, que mostrou que a pedra ajuda a tirar o cheiro da maconhaCom isso, conseguia esconder da minha mãeSou filho único e moro com elaEla é pedagoga, tem livros escritos e devo a ela sair desse embaloMinha vida virou um infernoEu vendia saúdeEra faixa preta de judô e campeão de motocrossSó consegui sair do fundo do poço depois de um sonhoDesde que meus filhos eram pequenos, tenho costume de chamá-los de “bro” (diminutivo de brother, irmão em inglês)Pois então, no sonho vinha descendo um ônibus de viagem e que quebrou no caminho de uma praça, onde havia um mendigo, que era eu Meus dois filhos desceram , passaram por mim e não me reconheceram até o momento em que gritei: “bro!” Eles então me abraçaram e saí daquela vidaÉ o que pretendo fazer.”
Caio, de 55, dono de pousada
Entrevista
Karla Giacomin
Presidente do Conselho Nacional
dos Direitos do Idoso
`O Brasil não
valoriza o velho`
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), a geriatra mineira Karla Giacomin alerta que o Brasil ainda não acordou para as necessidades dos velhos que, em 30 anos, serão um em cada quatro brasileiros“Não se deve permitir que o velho busque o crack como saída, como fuga do preconceito”, alerta
Pode-se dizer que o crack chegou à terceira idade?
Os velhos, como qualquer outro grupo etário, não estão livres do crackNo entanto, o uso dessa droga não é queixa prioritária no Conselho Nacional dos Direitos do IdosoAinda temos velhos que nunca ouviram falar de crack no seu dia a dia.
Qual é o risco do crack para os idosos?
O problema do crack é que ele não tem voltaA droga tem alta taxa de letalidade e causa grave processo de demência, com perda social definitivaPortanto, o maior trabalho é preventivoNão se deve permitir que o velho busque o crack como saída, como fuga.
Como fuga de quê?
O Brasil ainda não se preocupa com as necessidades da pessoa envelhecida, sendo que, daqui a 30 anos, um em cada quatro brasileiros será idosoVocê sabe que o que a gente reprime e recalca a gente não enfrenta.
Como assim?
O Brasil não valoriza o velho como indivíduo, o quanto ele pode colaborar e participar da sociedadePara se ter uma idéia, o Plano Nacional de Educação não prevê cursos de graduação ou pós-graduação para o idosoHá muito o que se pensar sobre a incorporação desses saberes na pós-carreiraAtualmente, ao se aposentar é como se a pessoa perdesse a capacidade financeira e o valor social