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Estado de Minas

Jovens de Noiva do Cordeiro organizam grupo artístico e sepultam preconceito

Elas dão novo exemplo de superação e mesmo sem deixar a rotina do campo conquistam espaço


22/04/2012 07:12 - atualizado 29/08/2014 09:08

Keila, que interpreta a popstar Lady Gaga acompanhada de Vania, Elen, Tatiane, Glaiciele, Dayse e Daiane: talento exibido nos palcos, sem abandonar tarefas de rotina(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)
Keila, que interpreta a popstar Lady Gaga acompanhada de Vania, Elen, Tatiane, Glaiciele, Dayse e Daiane: talento exibido nos palcos, sem abandonar tarefas de rotina (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)


Belo Vale – Como no conto de fadas, a abóbora se fez carruagem e levou, dos campos para os palácios da cultura, “Lady Gaga” e suas meninas. Que não se engane quem pensa que a bela cover, incorporada por Keila Fernandes, de 27 anos, sucesso do momento, é a principal performance de Noiva do Cordeiro, comunidade de Belo Vale, a 100 quilômetros de Belo Horizonte, na Região Central de Minas. A superação é regra no distrito de 300 habitantes. Depois de mais de século de PRECONCEITO, tempo em que mulheres de bem eram tratadas como prostitutas, a comunidade venceu a segregação, ganha respeito e se mostra referência multiplicadora de arte na região. Hoje, com 32 artistas qualificados por oficinas de dança, teatro e música, o Noiva do Cordeiro Show, fundado em família, cumpre agenda intensa em projeto itinerante de inclusão social. No mês passado, o quadro de Keila no papel da conhecida intérprete norte-americana foi a sensação para mais de mil pessoas emuma praça da cidade e ganhou a aldeia global, movimentando as redes sociais nas ondas da internet. Mas no palco havia mais. Além de Vânia, Elen, Tatiane, Glaiciele, Dayse e Daiane, companheiras dançarinas de Keila, se apresentaram duplas de stand up, repentistas, cantores e grupo masculino. Talento de quem resolveu reescrever as cenas da vida e transformar a história de exclusão em uma peça de sucesso. “A repercussão desse trabalho, para nós, é como ganhar o mundo”, resume Flávia Emediato, de 27, coordenadora artística.

Vinte quilômetros de estrada de terra separam a sede do município de Belo Vale do povoado de Noiva do Cordeiro. Acesso difícil, que ainda impede o avanço da comercialização de artesanato, lingerie e agricultura para outras paragens. Celulares não funcionam. Telefonia fixa, só a de um orelhão solitário. Mas, vencidos os tropeços do caminho, a hospitalidade é à melhor moda mineira, como os antigos que dão valor ao sorriso e ao aperto de mão. A beleza da estradinha de campos verdes e cheiro cítrico – garantido pelos pés de tangerina ponkan, da qual a região é grande produtora – se repete em corpo e alma na família de dona Delina Fernandes Pereira, de 67.

Destacam-se a liberdade, a beleza e o carisma dos homens, das mulheres e das crianças do vilarejo. Assim como o poder produtivo da comunidade, onde cada um trabalha pelo bem de todos. As moças, estrelas no palco, nada têm de estrelismo: pegam pesado na lavoura, na arrumação da casa e na confeccão de roupas. Já os rapazes, bons de cena, além de trabalhar também na enxada levantam paredes e embalam seus filhos. A mesa posta no salão comunitário exibe a fartura e o prazer em compartilhar com as visitas.

Casa de educação exemplar, livre de imposições e sem a assombração da culpa, as obrigações são naturais apenas às carências comuns. Ninguém foge ao trabalho. Arodi Fernandes, de 42, o Van Damme, diz que ali, mesmo desgarrados das igrejas, todos estão cada vez mais próximos de Deus. “Aqui, a gente se apega ao que entendemos de mais importante na palavra de Deus: o respeito e o amor ao próximo”, resume.

Na comunidade, de fato, percebe-se que todos os irmãos se amparam. Rosalee Fernandes Pereira, de 47, filha de dona Delina, aprendeu com a mãe a liderança de quem ama e protege. A líder comemora o salto da família, próspera e em paz. Especialmente, no momento, o avanço artístico da trupe Noiva do Cordeiro Show. “É tempo de colher. O primeiro passo foi o trabalho de capacitação com o teatro, com a música e com a dança. Agora, com o grupo capacitado, podemos mostrar para o município que todo mundo é capaz. Nosso projeto busca a inclusão social. É uma porta de oportunidades para as novas gerações”, diz.


O palácio do futuro

Para o ator, diretor e dramaturgo belo-valense Walmir José, nome de destaque das artes cênicas de Minas, performances como as que estão rodando o mundo pela internet ainda estão muito distantes do verdadeiro potencial do grupo. Walmir acredita que os artistas que ele, professor e grande admirador da comunidade, ajudou a formar em Noiva do Cordeiro, bem orientados, vão ainda mais longe. Desde 1999, com festivais amadores, o teatro é objeto de estudo entre os integrantes da família Fernandes.

Agora, as palavras do veterano encenador já ecoam no futuro. Com projeto de Raul Belém Machado e Mariluce Duque, o Palácio da Cultura Chico Fernandes está para sair do papel. As plantas sobre a mesa refletem o empenho de Rosalee na captação de recursos e na realização da obra, pré-aprovada pelo Ministério da Cultura. O projeto do centro cultural de dois pavimentos, com 1,6 mil metros quadrados de área construída, prevê estacionamento, salões de ensaio, sala multimídia, ateliê de produção, três camarins, elevador, auditório e teatro com capacidade para 200 pessoas. Rosalee sonha ter o espaço aberto para toda a população de Belo Vale antes da Copa do Mundo.

Enquanto o palácio não fica pronto para receber o público, o Noiva do Cordeiro Show, patrocinado pela Companhia Vale, se apresenta como pode, com seus shows e oficinas pelos distritos de Belo Vale. Todos os 32 integrantes se desdobram nas mais variadas funções dentro e fora das quatro paredes da cena itinerante. Eliene Leite Fernandes, de 28, entre outras tantas tarefas, cuida da comunicação do grupo. Dedicada, cheia de orgulho dos parentes atores, dançarinos e cantores, Eliene, braço direito da líder Rosalee, organiza a agenda e faz de tudo para garantir o sucesso das oficinas comandadas pela cantora e professora Eda Costa – outra artista profissional que agrega ainda mais valor ao projeto de inclusão da associação comunitária.

OLHOS BRILHANTES

Keila, a Lady Gaga da companhia, conta que o trabalho cover tem lhe trazido muita felicidade. Vestida de vermelho, em figurino sexy inspirado na musa internacional e produzido pelas costureiras da comunidade, a jovem atriz vem fazendo a alegria da filha Ângela, de 5, e das outras crianças do lugar. Já são cinco as coreografias em repertório. “A gente está trabalhando para tentar trazer a essência da Lady Gaga, sempre muito preocupada em combater o preconceito. O que combina com a gente, porque já sofremos muito com isso. As pessoas não são só aparência. São coração também”, ressalta. Keila diz que sua principal motivação é sua mãe, dona Delina. “Ver os olhinhos dela brilhando quando estou no palco é tudo na minha vida”, emociona-se. O marido, Marcelo, de 26, seu primo, é dançarino do grupo e outro grande fã da superstar de Belo Vale. Sorridente, de mãos firmes e cabeça erguida entre a parentada de várias gerações, a matriarca se despede das visitas para retomar a liderança serena, convencida de que todas as escolhas de sua vida foram acertadas: “Eu já era tão feliz, meu filho, e nem sabia”.

(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)

Da discriminação ao reconhecimento

No fim do século 19, Maria Senhorinha de Lima, natural de Roças Novas, povoado de Belo Vale, se casou com o francês Arthur Pierre. Três meses depois, infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Augusto Fernandes de Araújo, onde hoje está a comunidade de Noiva do Cordeiro. A atitude foi condenada e os dois, rotulados de pecadores, tiveram amaldiçoada sua descendência por gerações. Nos anos seguintes, em toda a redondeza, a atitude corajosa de Senhorinha ganhou mais olhares de reprovação. Mas o casal tocou a vida, construiu casa e criou 12 filhos. A situação se complicou novamente em meados do século passado, quando Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro, que batiza o lugarejo, e converteu toda a família, agravando as relações com parentes vizinhos e católicos. Novo período de polêmica e perseguições. Em 1990, um rompimento completo abalou a comunidade, permanecendo no local, que tem 46 moradias e onde todos são parentes, apenas os que defendiam uma sociedade temente a Deus, mas sem qualquer religião. Em 2007, o Estado de Minas trouxe a público a história da família, que ganhou documentário de TV e rodou mundo. Hoje, respeitada pela maioria dos belo-valenses, a comunidade tem ajudado a promover a cultura na região.


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