Uma ligação ontem, dia do aniversário de 14 anos de Suzana (nome fictício), interrompeu os seis meses que a adolescente ficou sem contato com o pai, que é sapateiro em Belo Horizonte. Desde que a mãe, a copeira Simone, de 30 anos, o acionou judicialmente para pagar a pensão alimentícia da filha, o ex-marido desapareceu. Por duas vezes a Justiça decretou sua prisão, mas ele conseguiu prorrogar prazos e rola a dívida há dois anos. Casos como o dele, aparentemente corriqueiros, abarrotam a Justiça e as cadeias de Minas e podem obrigar o governo até mesmo a criar uma unidade prisional especial para os devedores. O plano da Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi) de construir o Centro de Referência para Devedores de Alimentos, com cerca de 100 vagas só para esse tipo de infrator, é a resposta do estado para a explosão no número de detenções relativas a esses casos.
Em dezembro de 2010 eram 179 presos no sistema estadual por esse motivo. No mesmo período do ano passado, o número cresceu 11%, chegando a 199 pais e responsáveis detidos por não pagamento do benefício. A quantidade disparou, chegando a um crescimento de 33% em fevereiro deste ano, quando alcançou 238 internos. Em 2010, segundo a Defensoria Pública de Belo Horizonte, corriam 2.800 processos pedindo pagamento de pensão em Minas Gerais.
E não são apenas pessoas humildes que acabam detidas por não pagar: o tetracampeão de futebol Romário, hoje deputado federal pelo PSB/RJ, chegou a ficar preso em casa por não quitar o benefício da filha, em 2009. Um ano antes havia sido a vez de o ator Mário Gomes ser detido devido à dívida com a filha. Em 2007, Werley di Camargo, irmão da dupla Zezé di Camargo e Luciano, foi preso em Belo Horizonte pelo mesmo motivo. “Quem não paga o determinado pela Justiça pode ficar preso entre 30 e 90 dias. É uma forma de coerção. Quitando a dívida, a pessoa é libertada. É diferente de um processo criminal, que muitas vezes não resulta em cadeia imediata, mas é feito assim com o objetivo de garantir a sobrevivência do dependente”, pondera o defensor público de Belo Horizonte Valter Guilherme Alves Costa.
O projeto do centro de referência seria um alento para desafogar os presídios, porque hoje a Suapi precisa abrir alas especiais, separando esses presos dos que cometeram crimes mais graves – isso em uma rede prisional que já se encontra saturada. No ano passado, segundo o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, as vagas para presos provisórios existentes em Minas Gerais eram ultrapassadas em 61% pela quantidade de internos. Pelo relatório, 23.537 presos provisórios – entre eles quem não pagou pensão alimentícia – ocupavam espaço feito para 14.610.
Ação criminal
Diferente do processo civil, que resulta em prisão de 30 a 90 dias, se o Ministério Público entender que há prejuízo maior ao dependente, por uma negligência de cuidado continuada, um processo criminal é aberto e tem punição prevista de um a quatro anos de reclusão. Os condenados acabam tendo a detenção comutada em penas alternativas ou em semiliberdade, o que não os poupa da estada de numa cela até a decisão da Justiça.
Na Região Metropolitana de BH, segundo a Suapi, os presos ficam abrigados no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (Ceresp) da Gameleira, na Região Oeste de BH. De acordo com a subsecretaria, no momento um local adequado que “atenda o propósito” está sendo procurado. Mas não há previsão orçamentária para isso. Como a pasta mudou de secretário recentemente, o plano passa por reavaliação e, enquanto isso, as unidades prisionais passam por adaptações para receber esse tipo de preso em alas separadas.
Suportando toda a sobrecarga representada pela criação da filha, a copeira Simone afirma que a prisão é uma boa forma de convencer o devedor a quitar suas dívidas e assumir responsabilidade com os dependentes. “Ele (o pai da garota) não paga. Faz acordo, não cumpre e vem a decisão de prisão, mas ele sempre consegue um jeito de resolver mais tarde”, conta. “Não importa o lugar onde ele vai ficar preso, se é uma unidade para quem não paga pensão alimentícia ou se é a delegacia. Ele precisa ser punido para entender que precisa ajudar a filha. Ele tem um menino de 9 anos de outro casamento, que também não recebe nenhum centavo”, diz Simone.
A filha Suzana, segundo ela, sente muito com o castigo forçado que representa toda essa situação, mas já declarou seu apoio. “Ela ia para casa do pai todos os fins de semana, mas, desde quando recorri à Justiça, ele nunca está em casa quando ela liga para conversar ou para marcar uma visita”, disse. “A Suzana fica triste, mas entende a situação e já me disse que, se ele ajudasse, ela poderia ter coisas que gostaria e eu não tenho como comprar.”
Da dívida até o xadrez
Os passos da prisão por não pagamento de pensão
* Uma ação de pensão alimentícia é aberta na Justiça para estabelecer com quanto os responsáveis deverão contribuir mensalmente para o sustento do dependente
* Se o pagamento atrasa, uma ação de execução alimentícia pode ser aberta para cobrar o benefício
* O juiz cita o responsável, que recebe intimação de um oficial de Justiça para comparecer ao fórum em até três dias
* Lá, o devedor deve justificar de forma satisfatória o não pagamento, comprovar que está em dia ou quitar o que é devido
* Nos casos em que o devedor não se justifica, o juiz determina a prisão por prazo de 30 a 90 dias, segundo o Código de Processo Civil
Centro é aprovado até por ex-devedor
A construção de uma unidade prisional, como o Centro de Referência para Devedores de Alimentos, para abrigar presos que não pagam a pensão a dependentes é aprovada até mesmo por quem não consegue pagar o benefício e vive a ameaça de ser detido. O garçom Vagdo Pereira Lima, de 33 anos, ficou apreensivo quando recebeu a ordem judicial para pagamento da pensão da filha de 16, sob pena de prisão. Ele diz que ficou quase um ano sem ajudar a menina e é favorável à criação de unidade de detenção específica, até para preservar detidos de presos perigosos como traficantes, homicidas e assaltantes. “Não fiquei sem pagar porque quis, tive um problema de família e imprevistos”, disse.
Ele afirma que, quando recebeu a intimação, várias cenas de violência passaram por sua cabeça. “Fiquei assustado com a possibilidade de ser preso. Sou trabalhador, pai de família, e ficar preso com todo mundo seria constrangedor e arriscado para a minha própria vida”, conta. No caso dele o centro de referência seria garantia de integridade.
Pai de sete filhos, Vagdo fez acordo com a ex-mulher. Ele pretende quitar os pagamentos atrasados com descontos em folha. Do seu salário, 20% são destinados aos gastos com a filha. Segundo ele, a situação complicada não interferiu no afeto e a relação com a menina é muito boa. “Agora tudo vai se resolver e não pretendo mais correr o risco de ser preso.”
Acostumado a lidar com os dois lados da moeda, o defensor público Valter Guilherme Alves Costa, da capital, cuida dos interesses de quem deve e de quem cobra pensão. Segundo ele, a melhor solução é sempre um acordo entre as partes, como o Vagdo e a ex-mulher. “Fazer as duas partes se entenderem costuma ser mais eficaz e duradouro do que a decisão de um juiz, que pode levar à prisão”, explica.
Para o defensor, a razão do aumento de prisões se deve justamente ao maior conhecimento da população sobre seus direitos. “Fazemos cada vez mais acordos na Defensoria Pública e também tem aumentado a procura por representação na Justiça. Num primeiro momento a execução serve para cobrar os últimos três meses devidos. Ninguém é preso de repente. A pessoa recebe citação da Justiça e tem três dias para comprovar que já quitou a dívida ou pagá-la”, salienta.
De acordo com ele, muitas vezes o responsável desaparece e, como não se comprova o pagamento, o juiz emite um mandado de prisão. “Quando o devedor, por exemplo, vai tirar documentos, o funcionário público puxa sua ficha, encontra o mandado em aberto e chama a polícia. Se o devedor parar num blitz, o policial pode também identificar a ordem de prisão”, acrescenta Costa.
Valter Costa explica que desemprego não é justificativa para escapar da prisão. “O dependente precisa desse recurso e só um motivo muito forte, como uma internação hospitalar, pode eximir o pagamento.
O que diz a lei
O Código de Processo Civil estabelece que o devedor de pensão tem três dias, depois de citado, para pagar, provar pagamento ou justificar a impossibilidade de fazê-lo. Se o devedor não pagar nem justificar, o juiz pode decretar prisão de um a três meses, suspensa com a quitação. O Código Penal define que deixar de prover a subsistência do cônjuge ou de filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho tem pena de detenção de um a quatro anos e multa de um a 10 salários mínimos. A Lei 5.478, de 1968, determina que o cumprimento integral da pena de prisão não exime o devedor do pagamento.