O bebê nascia, a mãe o tomava nos braços e observava com atenção. Aliviada, percebia que ele era saudável, “perfeito”. O sonho delicado atormentou como um pesadelo as noites da cabelereira Regiane Rocha Cunha da Silva. “Eu acordava e, nossa! Não era nada daquilo”, recorda, chorando. Ela estava grávida de 17 semanas e quatro dias quando a ultrassonografia acusou: seu bebê era anencéfalo. O cérebro de formação incompleta o condenaria a morrer horas ou dias após o parto. Regiane, de 25 anos, foi a primeira mulher de Minas Gerais a interromper a gestação de um feto anencéfalo após a descriminalização pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O pedido de Regiane, negado em março pela Comarca de Brumadinho, foi acatado em segunda instância pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado. Em 3 de maio, o parto do natimorto foi realizado no Hospital Júlia Kubitschek, na Região do Barreiro, em Belo Horizonte. Ainda em resguardo, Regiane decidiu contar sua história em entrevista exclusiva ao Estado de Minas.
A notícia
A ultrassonografia finalmente revelou que um menino estava à caminho: era João Antônio – nome escolhido pelos pais. Tinha 17 semanas e quatro dias de gestação. Porém, na mesma sessão, o médico disse que o bebê tinha “um problema”. “Que tipo de problema?”, perguntou Regiane, que havia ido desacompanhada ao posto de saúde. “Anencefalia”, anunciou o médico. “O que é isso? É um remédio que eu vou ter que tomar?”, a mãe não entendeu... Depois de explicar, o médico a aconselhou a abortar. Regiane não acreditava no que ouvia. No dia seguinte, ela e o marido foram a uma clínica em Belo Horizonte onde outras duas ultrassonografias confirmaram o diagnóstico.
Regiane chorou quase sem parar nos dias seguintes. “Achei que ela ia enlouquecer”, recordou Vander. A mãe se desesperava, o pai se indignava. “Fiquei revoltado até com o próprio Deus. Cheguei a descrer. Como é que aquilo podia acontecer comigo, que queria tanto ter um filho, que não tinha vício nenhum? Depois fui me conformando”, relata Vander. A mãe vacilava, não sabia se queria mesmo interromper a gravidez. “Fui pesquisar na internet e lá dizia que o bebê anencéfalo parecia uma rã. Aquelas fotos mais horríveis do mundo. Depois que vi, fiquei pirada: ‘Quero tirar isso de mim.’”
O apoio
Na Maternidade Sofia Feldman, em Belo Horizonte, ela e Vander se tranquilizaram ao ouvir da médica que o bebê “era um anjinho que vinha ao mundo para passar pouco tempo”, lembra Regiane. “Foi quando voltei a amar meu filho.” Regiane continuou decidida a precipitar o parto, mas chegou a hesitar por causa do marido. Vander passou a achar que o melhor seria deixar o filho nascer, ainda que pudesse morrer logo em seguida.
“Mas, vendo a angústia dela, minha cabeça mudou. Decidi apoiá-la na decisão que ela tomasse”, contou. Foi Vander que, por telefone, explicou a situação para os pais de Regiane, na Bahia. A família concordou com a interrupção, mas foi preciso lançar mão de uma “pequena mentira”. Ao pai da moça, católico fervoroso, “falei que o bebê poderia trazer até mesmo a morte de Regiane”, revelou. A mãe de Vander, espírita, “foi contra e ponto final”. Em 30 de abril, uma segunda-feira, Regiane foi internada no Hospital Júlia Kubitschek. Passou a tomar comprimidos para induzir as contrações. Na quinta-feira, às 17h30, veio à luz, com 26 semanas e um dia de gestação, o menino João Antônio.
Minutos de convivência
Logo depois de dar à luz, ainda deitada no leito, Regiane Rocha Cunha da Silva perguntou ao marido Vander: “Ele está feio?”. O rapaz respondeu: “Não, está bonito. Pode olhar”. Antes, ela pediu à médica que pusesse uma manta no corpo do bebê e uma gaze sobre a cabeça. “Tinha medo de vê-lo, do impacto que seria. Queria ir aos poucos”, justifica. Primeiro ela levantou a manta e viu que o corpo do bebê era perfeito. Em seguida, tirou a gaze e viu a formação incompleta no topo da cabeça. Não se assustou. Acariciou-o e jura que ele se mexeu: voltou o rosto para seu lado e depois tornou à posição inicial. Vander também percebeu.
O atestado de óbito o registrou como natimorto, mas o casal tem certeza de que ele nasceu vivo. O corpo minúsculo do bebê foi enterrado em 4 de maio, em uma cerimônia simples, à qual compareceram apenas familiares e amigos e à qual faltou Regiane, ainda internada no hospital. “Foi a decisão mais difícil que tomei até hoje, com certeza. Ainda que ele fosse morrer depois de nascer, na minha barriga ele estava vivo”, resume Regiane.
Hoje, ela se sente mais madura: “Não é que não respeitasse as pessoas, mas passei a tratá-las melhor. Eu era meio arrogante, controladora. Vi que não vale a pena ser tão rigorosa. Tudo o que a gente planejou não deu certo. As coisas fogem ao nosso controle”. Marido e mulher disseram que, agora, amam-se mais do que antes.
“Apesar do que aconteceu, a gente se aproximou pra caramba. Penso que Deus mandou para isso mesmo. A gente estava brigando muito. Há males vêm para o bem”, garantiu Vander. Regiane confirmou com um sorriso. O casal já pensa em outra gravidez. “Ainda preciso tomar uns remédios, mas daqui a seis meses vamos tentar de novo”, planeja Regiane.
Gratidão
Regiane e Vander haviam acertado que se manteriam anônimos na reportagem do Estado de Minas. Ele não tinha medo de se identificar, mas a cabelereira receava vir a sofrer algum tipo de hostilidade. Ao final da conversa, inesperadamente, mudaram de ideia. “Contando nossa história e mostrando quem somos, queremos ajudar outras pessoas que venham a passar pelas mesmas dificuldades”, justificou Vander. Regiane até se sentiu à vontade para pedir: “Você pode botar que nós agradecemos o pessoal do hospital que fez o parto? Eles cuidaram muito bem de nós”.
Decisão histórica
Em 12 de abril, após oito anos de discussão, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que mulheres que optam por abortar fetos anencéfalos e médicos que interrompem a gravidez não cometem crime. A maioria dos ministros entendeu que um feto com anencefalia é natimorto e, portanto, a interrupção da gravidez não é comparada ao aborto, considerado crime pelo Código Penal. Em vigor desde 1940, o Código prevê apenas dois casos para autorização de aborto legal: quando coloca em risco a saúde da mãe e em caso de gravidez resultante de estupro. Conforme médicos ouvidos na audiência pública realizada pelo STF em 2008, a gravidez de feto sem cérebro pode provocar uma série de complicações à saúde da mãe, como pressão arterial alta, risco de perda do útero e, em casos extremos, a morte da mulher. Por isso, ministros afirmaram que impedir a mulher de interromper a gravidez nesses casos seria comparável a uma tortura. “O que se pede é o reconhecimento desse direito que tem a mulher de se rebelar contra um tipo de gravidez tão anômala, correspondente a um desvario da natureza. Dar à luz é dar à vida e não à morte”, afirmou o ministro Ayres Britto.
Normas para a interrupção da gravidez
o Conselho Federal de Medicina definiu as regras a serem seguidas para o aborto de fetos anencéfalos
A interrupção da gestação só será recomendada quando houver um “diagnóstico inequívoco de anencefalia”
O exame ultrassonográfico deverá ser feito a partir da 12ª semana de gravidez (três meses de gestação)
O exame precisa ser assinado por dois médicos
É necessário o registro de duas fotografias que mostrem o feto verticalmente e outra em polo cefálico, detalhando a caixa encefálica
A cirurgia para interromper a gravidez deve ocorrer em local com estrutura adequada
Os conselhos regionais de medicina deverão atuar como “julgadores e disciplinadores” da decisão seguindo “a ética”