O documento de compra amarelado, puído nas bordas, datado de 10 de abril de 1963, é uma das preciosidades guardadas com carinho pelo colecionador Sebastião Ribeiro, de 85 anos, da Filatélica Globo Recordação particular entre milhares de selos de todo o mundoMarco histórico do negócio que há meio século mudou a vida do filho da italiana Aida Sequine e de dezenas de muitos comerciantes de Belo HorizonteA linha do tempo do filatelista, nascido em Três Corações, no Sul de Minas, teve ponto alto com a inauguração da Galeria Ouvidor, em 1964, primeiro grande centro lojista da capital – endereço emblemático da Região CentralFoi quando Sebastião apostou no futuro físico do comércio: o shopping center“Foi um acontecimentoA cidade inteira vinha passear na galeriaAs pessoas vinham do interior, com toda a família, só para andar de escada rolante”, relembra, saudosoÀs vesperas de completar 50 anos, um dos pontos comerciais mais queridos dos mineiros, envelhecido, se movimenta em busca de apoio para ser revitalizado até a Copa do Mundo de 2014.
Bem perto de comemorar 50 anos, os desafios da Galeria do Ouvidor são grandesPara o síndico Valter Faustino da Silva, de 56, Belo Horizonte cresceu e o prédio precisa acompanhar os avanços da capitalOs dois elevadores e as quatro escadas rolantes não atendem bem os cerca de 40 mil clientes por dia que circulam pelos seis andares do endereço“Nossa principal meta é a revitalizaçãoEstamos trabalhando em busca de parceiros com recursos para uma ampla reforma em toda a área comum da galeria”, anunciaValter, na companhia da encarregada administrativa Cristiane Gisele Siqueira, de 27, explica projeto sob a responsabilidade da arquiteta Débora MendesO síndico acredita que, com o enorme potencial do ponto, não vai ser difícil agregar empresários de visão e sensibilidade para a empreitada.
Na primeira fase – que a administração espera ver concluída até o ano que vem –, estão previstas obras de implantação de duas escadas rolantes, ao custo aproximado de R$ 500 milO síndico ressalta os cuidados com a segurança estrutural do edifício para a reforma e pontua detalhes do planejamentoSegundo ele, cálculo feito por especialistas traça as vantagens matemáticas das escadas rolantes em relação aos elevadores Uma escada de um metro de largura pode transportar até 9 mil pessoas por hora, enquanto um elevador, com capacidade para 700kg, dá conta de apenas 600 usuários“Sem falar nas vantagens comerciais, já que na escada rolante o consumidor tem acesso visual às lojas e acaba se lembrando de algo que ele gostaria de comprar”, diz Valter Faustino.
Novos costumes
Ao longo dos tempos, a Galeria do Ouvidor testemunhou transformações na moda e nos costumes da família mineiraEm quase 50 anos, acompanhou dias de glória para confecções, artesanatos em couro, prata e ouro, jeans e bijuterias, e hoje vê crescer ainda mais a força dos produtos para a fabricação de bijuterias e artesanatosO primeiro salão unissex da capital marcou o fim dos anos 1960 no célebre endereço entre as ruas São Paulo e CuritibaNero Almeida, de 65, cabeleireiro desde os 20 anos, apostou na diferença, venceu preconceitos e foi reconhecido cidadão honorário de Belo Horizonte“Fui o primeiro homossexual a receber esse título numa cidade brasileira”, conta.
“Aqui no salão, de melhor, a educação, o capricho… tudoO Nero é excelente profissionalHá 20 anos sou freguesa dele”, elogia, satisfeita com o novo trato no cabelo, Conceição Rodrigues, de 63, moradora de São Sebastião das Águas Claras, em Nova LimaA cada dois meses, ao menos, a cozinheira do Bar do Marcinho corta a cidade pela hora marcada com o moço que levou os homens às salas de beleza de MinasA metros do salão do Nero, casal maduro, abraçado, olha vitrine picanteO homem de bigode cochicha algo no ouvido da mulher, que acha graça e dá-lhe tapinha nas costasAbordados, esquivam-se serelepes: “A gente está só olhando” Deixam a cena a passos apressados.
No balcão do Êxtase Sex Shop, Maria José Soares, de 58, comenta que, apesar dos mais “avergonhados”, os casais de Belo Horizonte “estão com a cabeça mais aberta”Conta que todos os produtos têm boa saídaDas roupinhas especiais aos acessórios mais indecentes, vale tudo para “não deixar esfriar o amor”“É um incremento que eles dão ao relacionamento para sair da rotina”, considera“O negócio já foi muito bom, mas com a concorrência enfraqueceu um pouco”, diz Maria José, há 30 anos no prédio comercial, dez deles dedicados na loja de sex shop da filha“‘Nunca entrei numa loja dessas, não… vim só pra conhecer, viu!?’; ‘Ah, vim comprar pra uma amiga’ e ‘Um amigo pediu pra eu olhar o preço…’ É o que a gente mais escuta aqui”, diverte-seDo gênero, são dez as lojas especializadas na Galeria do Ouvidor.
OUTROS TEMPOS: LP, boca de sino, pastel e escada rolante
O Centro da cidade, mais do que referência, era obrigação para os garotos que estudavam no velho Colégio AnchietaA Galeria do Ouvidor, poderia-se dizer, referência obrigatóriaSe sobrava uma graninha para comprar um LP, o estreito prédio com entradas pelas ruas São Paulo e Curitiba estava ali na mão (Raul, o goleiro e ídolo do Cruzeiro, já não tinha mais loja de discos no pedaço)Dezenas de alfaiates estabelecidos no local transformavam em calças bocas de sino os tecidos que lhes apresentavam às centenasO tradicional pastel na diminuta lanchonete era de leiMesmo porque a palavra colesterol estava entre as menos procuradas nos dicionáriosAté hoje, em espaço ampliado, a iguaria está lá a convidar os saudosistasO Nero cabeleireiro era atração naquele início dos anos 1970, pela vasta cabeleira e pelos trejeitos – à época, acreditem, era um tipo incomumRelojoarias, livrarias, papelarias, casas de bijuterias compunham aquele simpático precursor dos shoppings popularesBons tempos em que até escada rolante fazia sucesso! Afinal, havia poucas em Belo HorizonteE a Ouvidor tinha logo duas! (Cláudio Arreguy)