Lá se vão quase 50 anos desde a entrevista do escritor e médico Guimarães Rosa ao crítico alemão Günther WLorenzE os grandes rios? Ah, esses ainda guardam semelhanças com os homens, mas longe de serem poéticas, como as enxergadas pelo gênio que contou em prosa a alma do sertão mineiroAbarrotados de sedimentos, muitos reduzidos a canais de esgoto, são rasos e podres, tal como a pobreza de espírito da sociedade que se acostumou a descartar nos cursos d’água tudo o que já não serveBasta olhar para os trechos assoreados do São FranciscoMarco na obra de Rosa, no estado e no país, o grande e velho Chico tem áreas onde o transporte hoje só ocorre em pequenas embarcaçõesUm problema que começa antes: pode ser sentido já no cheiro das águas cinzentas do Ribeirão do Onça ou nas margens tomadas de sacos plásticos e lixo do Rio das Velhas, na Grande BHMas é a visão do leito seco de mananciais na bacia do Jequitinhonha, como o Córrego do Vandinho, em Padre Carvalho, que não deixa dúvida: a ação do homem tem conseguido apagar a magia da palavra “rio” e ameaçar o milagre da renovação da vida em ecossistemas cada vez mais castigados, a ponto de, pouco a pouco, roubar-lhes a eternidade.
Foi o que constatou o Estado de Minas durante um mês de jornada, percorrendo 6.963 quilômetros e atravessando 42 municípios das cinco maiores bacias hidrográficas de Minas, em busca das principais razões da asfixia de nossos rios
Composta por 10 bacias hidrográficas estaduais e um número de córregos, ribeirões e rios tão grande que nem o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) foi ainda capaz de mapear, Minas Gerais tem 67% de seu território banhado por cursos d’água, mas parece não ter se dado conta dessa responsabilidade“Áreas de cabeceiras e nascentes devem ter cuidado maiorSe não há controle, ocorre uma série de impactos para quem está abaixo”, adverte o gerente de Conjuntura dos Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Alexandre LimaCom apenas 30% das unidades de conservação regularizadas, o estado apresenta fragilidades quanto à proteção de matas e florestas, recantos fundamentais à produção de águaE se a quantidade se apresenta como problema, a qualidade do recurso hídrico talvez seja hoje o maior desafioMinas entrega diariamente a nove estados água contaminada por cerca de 1,7 bilhão de litros de esgoto, despejados in natura nos corpos d’água“Exportamos poluição”, ressalta o professor de engenharia sanitária da Universidade Federal de Minas Gerais Leo Heller.
Divulgado na última semana, levantamento do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades, mostra que pouco mais de um quarto (25,9%) dos dejetos gerados em Minas são tratados, bem abaixo da média brasileira, de 37,8%Tantas pressões levam o estado a sustentar Índice de Qualidade da Água (IQA) médio ou ruim – parâmetro que reflete contaminação por esgoto – em 62% das 429 amostras analisadas pelo Igam em seu monitoramento deste ano
Se para o homem os efeitos da devastação são considerados “médios”, para a fauna, nem tantoSegundo a Fundação Biodiversitas, em 11 anos, de 1995 a 2006, o número de espécies na lista de peixes ameaçados saltou de três para 49O aumento está, em grande parte, relacionado a problemas como barragens, poluição e desmatamentoO quadro só não é pior em virtude da capacidade quase milagrosa dos rios se livrar por si mesmos de parte dessas descargas tóxicasA contaminação por esgoto é o tema da primeira reportagem da série em que o EM vai revelar, a partir de hoje e ao longo da semana, como estão as principais bacias hidrográficas mineirasA reportagem deste domingo mostra ainda as agressões que sofrem o São Francisco, o Rio da Integração Nacional, e seus afluentes, como contrapartida ao fato de fertilizar todo o sertão das Gerais.