"Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os ofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua ternidade. Sim, rio é uma palavramágica para conjugar eternidade." JOÃO GUIMARÃES ROSA (1965)
Lá se vão quase 50 anos desde a entrevista do escritor e médico Guimarães Rosa ao crítico alemão Günther W. Lorenz. E os grandes rios? Ah, esses ainda guardam semelhanças com os homens, mas longe de serem poéticas, como as enxergadas pelo gênio que contou em prosa a alma do sertão mineiro. Abarrotados de sedimentos, muitos reduzidos a canais de esgoto, são rasos e podres, tal como a pobreza de espírito da sociedade que se acostumou a descartar nos cursos d’água tudo o que já não serve. Basta olhar para os trechos assoreados do São Francisco. Marco na obra de Rosa, no estado e no país, o grande e velho Chico tem áreas onde o transporte hoje só ocorre em pequenas embarcações. Um problema que começa antes: pode ser sentido já no cheiro das águas cinzentas do Ribeirão do Onça ou nas margens tomadas de sacos plásticos e lixo do Rio das Velhas, na Grande BH. Mas é a visão do leito seco de mananciais na bacia do Jequitinhonha, como o Córrego do Vandinho, em Padre Carvalho, que não deixa dúvida: a ação do homem tem conseguido apagar a magia da palavra “rio” e ameaçar o milagre da renovação da vida em ecossistemas cada vez mais castigados, a ponto de, pouco a pouco, roubar-lhes a eternidade.
Foi o que constatou o Estado de Minas durante um mês de jornada, percorrendo 6.963 quilômetros e atravessando 42 municípios das cinco maiores bacias hidrográficas de Minas, em busca das principais razões da asfixia de nossos rios. A constatação é de que o estado onde nascem 33% das 12 regiões hidrográficas brasileiras – São Francisco, Atlântico Leste, Atlântico Sudeste e Paraná – não aprendeu a conciliar desenvolvimento com proteção. Esgoto, atividades industrial, minerária e agropecuária e ocupação desordenada exercem pressão cada vez maior sobre nascentes e cursos d’água com vazão cada vez menor, comprometendo a capacidade dos rios de se renovar. O resultado não se fez esperar e se traduz em problemas como o colapso no abastecimento em municípios do Vale do Rio Doce e a disputa por recursos hídricos no Triângulo Mineiro.
Composta por 10 bacias hidrográficas estaduais e um número de córregos, ribeirões e rios tão grande que nem o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) foi ainda capaz de mapear, Minas Gerais tem 67% de seu território banhado por cursos d’água, mas parece não ter se dado conta dessa responsabilidade. “Áreas de cabeceiras e nascentes devem ter cuidado maior. Se não há controle, ocorre uma série de impactos para quem está abaixo”, adverte o gerente de Conjuntura dos Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Alexandre Lima. Com apenas 30% das unidades de conservação regularizadas, o estado apresenta fragilidades quanto à proteção de matas e florestas, recantos fundamentais à produção de água. E se a quantidade se apresenta como problema, a qualidade do recurso hídrico talvez seja hoje o maior desafio. Minas entrega diariamente a nove estados água contaminada por cerca de 1,7 bilhão de litros de esgoto, despejados in natura nos corpos d’água. “Exportamos poluição”, ressalta o professor de engenharia sanitária da Universidade Federal de Minas Gerais Leo Heller.
Divulgado na última semana, levantamento do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades, mostra que pouco mais de um quarto (25,9%) dos dejetos gerados em Minas são tratados, bem abaixo da média brasileira, de 37,8%. Tantas pressões levam o estado a sustentar Índice de Qualidade da Água (IQA) médio ou ruim – parâmetro que reflete contaminação por esgoto – em 62% das 429 amostras analisadas pelo Igam em seu monitoramento deste ano. O desempenho representa piora em relação ao ano passado e atinge níveis que, segundo o próprio instituto, decretam estado de atenção. “Há rios entrando em situação que requer cuidado”, afirma coordenadora do monitoramento do Igam, Katiane Brito.
Se para o homem os efeitos da devastação são considerados “médios”, para a fauna, nem tanto. Segundo a Fundação Biodiversitas, em 11 anos, de 1995 a 2006, o número de espécies na lista de peixes ameaçados saltou de três para 49. O aumento está, em grande parte, relacionado a problemas como barragens, poluição e desmatamento. O quadro só não é pior em virtude da capacidade quase milagrosa dos rios se livrar por si mesmos de parte dessas descargas tóxicas. A contaminação por esgoto é o tema da primeira reportagem da série em que o EM vai revelar, a partir de hoje e ao longo da semana, como estão as principais bacias hidrográficas mineiras. A reportagem deste domingo mostra ainda as agressões que sofrem o São Francisco, o Rio da Integração Nacional, e seus afluentes, como contrapartida ao fato de fertilizar todo o sertão das Gerais.
Lá se vão quase 50 anos desde a entrevista do escritor e médico Guimarães Rosa ao crítico alemão Günther W. Lorenz. E os grandes rios? Ah, esses ainda guardam semelhanças com os homens, mas longe de serem poéticas, como as enxergadas pelo gênio que contou em prosa a alma do sertão mineiro. Abarrotados de sedimentos, muitos reduzidos a canais de esgoto, são rasos e podres, tal como a pobreza de espírito da sociedade que se acostumou a descartar nos cursos d’água tudo o que já não serve. Basta olhar para os trechos assoreados do São Francisco. Marco na obra de Rosa, no estado e no país, o grande e velho Chico tem áreas onde o transporte hoje só ocorre em pequenas embarcações. Um problema que começa antes: pode ser sentido já no cheiro das águas cinzentas do Ribeirão do Onça ou nas margens tomadas de sacos plásticos e lixo do Rio das Velhas, na Grande BH. Mas é a visão do leito seco de mananciais na bacia do Jequitinhonha, como o Córrego do Vandinho, em Padre Carvalho, que não deixa dúvida: a ação do homem tem conseguido apagar a magia da palavra “rio” e ameaçar o milagre da renovação da vida em ecossistemas cada vez mais castigados, a ponto de, pouco a pouco, roubar-lhes a eternidade.
Foi o que constatou o Estado de Minas durante um mês de jornada, percorrendo 6.963 quilômetros e atravessando 42 municípios das cinco maiores bacias hidrográficas de Minas, em busca das principais razões da asfixia de nossos rios. A constatação é de que o estado onde nascem 33% das 12 regiões hidrográficas brasileiras – São Francisco, Atlântico Leste, Atlântico Sudeste e Paraná – não aprendeu a conciliar desenvolvimento com proteção. Esgoto, atividades industrial, minerária e agropecuária e ocupação desordenada exercem pressão cada vez maior sobre nascentes e cursos d’água com vazão cada vez menor, comprometendo a capacidade dos rios de se renovar. O resultado não se fez esperar e se traduz em problemas como o colapso no abastecimento em municípios do Vale do Rio Doce e a disputa por recursos hídricos no Triângulo Mineiro.
Composta por 10 bacias hidrográficas estaduais e um número de córregos, ribeirões e rios tão grande que nem o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) foi ainda capaz de mapear, Minas Gerais tem 67% de seu território banhado por cursos d’água, mas parece não ter se dado conta dessa responsabilidade. “Áreas de cabeceiras e nascentes devem ter cuidado maior. Se não há controle, ocorre uma série de impactos para quem está abaixo”, adverte o gerente de Conjuntura dos Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), Alexandre Lima. Com apenas 30% das unidades de conservação regularizadas, o estado apresenta fragilidades quanto à proteção de matas e florestas, recantos fundamentais à produção de água. E se a quantidade se apresenta como problema, a qualidade do recurso hídrico talvez seja hoje o maior desafio. Minas entrega diariamente a nove estados água contaminada por cerca de 1,7 bilhão de litros de esgoto, despejados in natura nos corpos d’água. “Exportamos poluição”, ressalta o professor de engenharia sanitária da Universidade Federal de Minas Gerais Leo Heller.
Divulgado na última semana, levantamento do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades, mostra que pouco mais de um quarto (25,9%) dos dejetos gerados em Minas são tratados, bem abaixo da média brasileira, de 37,8%. Tantas pressões levam o estado a sustentar Índice de Qualidade da Água (IQA) médio ou ruim – parâmetro que reflete contaminação por esgoto – em 62% das 429 amostras analisadas pelo Igam em seu monitoramento deste ano. O desempenho representa piora em relação ao ano passado e atinge níveis que, segundo o próprio instituto, decretam estado de atenção. “Há rios entrando em situação que requer cuidado”, afirma coordenadora do monitoramento do Igam, Katiane Brito.
Se para o homem os efeitos da devastação são considerados “médios”, para a fauna, nem tanto. Segundo a Fundação Biodiversitas, em 11 anos, de 1995 a 2006, o número de espécies na lista de peixes ameaçados saltou de três para 49. O aumento está, em grande parte, relacionado a problemas como barragens, poluição e desmatamento. O quadro só não é pior em virtude da capacidade quase milagrosa dos rios se livrar por si mesmos de parte dessas descargas tóxicas. A contaminação por esgoto é o tema da primeira reportagem da série em que o EM vai revelar, a partir de hoje e ao longo da semana, como estão as principais bacias hidrográficas mineiras. A reportagem deste domingo mostra ainda as agressões que sofrem o São Francisco, o Rio da Integração Nacional, e seus afluentes, como contrapartida ao fato de fertilizar todo o sertão das Gerais.