Jornal Estado de Minas

Sujeira dos rios é maior que a verba para despoluição

Velhas, o curso d'água que recebeu maior investimento em despoluição em todo o estado, ainda é o que tem o leito mais contaminado, resultado do esgoto de 2,3 milhões de pessoas

Flávia Ayer

Santo Hipólito, Sabará, Santa Luzia e Nova Lima – Seja qual for o barco, o assunto no Velhas é um só: na tarde de quarta-feira, o rio não estava para peixe

Estamos em Santo Hipólito, na Região Central de Minas, destino cobiçado dos pescadoresA paisagem é deslumbrante, mas o cheiro, não tão agradávelComentava-se que três dias antes havia chovido em Belo Horizonte, a 232 quilômetros“O que acontece lá, sentimos aquiA água fica escura e os peixes somem”, diz, na embarcação, Erick Wagner Sangiorgi, de 40 anosSão as marcas da degradação ao longo dos 801 quilômetros de um dos principais afluentes do São Francisco, que carrega, além do esgoto de 2,3 milhões de pessoas, equivalente à população de Belo Horizonte, desafios colossaisApesar de a bacia do Velhas ter recebido R$ 1,2 bilhão em investimentos para revitalização desde 2007 – o maior do estado –, concentra as águas mais podres de Minas, ainda distante do sonho (e meta) de nadar na região metropolitana.

Os impactos sentidos pelos pescadores de Santo Hipólito, um dos pontos mais saudáveis da bacia, são reflexo do que ocorre desde a nascenteNuma expedição pelo Velhas, a equipe do Estado de Minas viu de tudo: lixões na beira do rio, areais clandestinos e ocupação irregular povoam a bacia hidrográfica e são pedras no caminho do curso d’água que nasce em Ouro Preto, na Região Central, e deságua no Rio São Francisco, em Várzea da Palma, no Norte de MinasA bacia do Velhas, que carrega a maior parte do esgoto da Grande BH, tem hoje o pior índice de qualidade das águas do estado, parâmetro que mede a presença de matéria orgânica e coliformes fecaisÉ também a campeã em contaminação por substâncias tóxicas, de acordo com o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam)
E se, por um lado, comemora a volta do peixe a municípios da Grande BH, também assiste ao aumento da pressão sobre cursos d’água capazes de lhe injetar vida, caso do Rio Cipó.

Mas tantos investimentos não foram em vão: o último relatório da Agência Nacional de Águas (ANA) destacou o Velhas pela “tendência de melhora”Mas aberrações insistem em sufocar a Meta 2014, que prevê investimentos de R$ 500 milhões do governo de Minas nos próximos três anos a fim de nadar, navegar e pescar no curso d’água, na Região Metropolitana de BH, no trecho próximo a Lagoa Santa, onde hoje o lixo se acumula nas margens da água turva“O grande desafio continua sendo o esgoto”, afirma o presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, Rogério SepúlvedaO Velhas e seus tributários atravessam 51 municípios mineiros, com população de 4,6 milhões de habitantes, sendo que metade joga os dejetos in natura na água, segundo a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam).

Municípios como Nova Lima, Sete Lagoas e Sabará insistem em lançar toda essa carga pesada sobre a bacia, embora prometam mudançaPara complicar, a própria Feam apontou que um quarto das estações de tratamento de esgoto (ETEs) da bacia do Velhas funcionam em condições precáriasNa foz do Ribeirão Arrudas, que corta BH e Sabará, na região metropolitana, é onde se tem, de fato, a dimensão do estragoEm ambiente tomado pelo cheiro de podridão, a visão é de um canal cinza carregado de fezes indo ao encontro do amarronzado VelhasAs águas pretas e espumosas do Ribeirão do Onça, que recebe os dejetos de Contagem e das regiões Norte e Pampulha de BH, não ficam longe e o esgoto desponta num cenário de cascatas e corredeirasNo meio do esgoto, Oswaldo Teixeira, de 42 anos, ganha a vida extraindo areia do Onça“É só beber uma cachaça que mata tudo”, acredita, referindo-se à possibilidade de contaminação.

Atualmente, segundo a Copasa, BH coleta 96% e trata 75% do esgoto
Já Contagem, outro município de peso, coleta 89% e trata 78% dos dejetos“É importante que o tratamento seja complementado pela desinfecção e remova também os organismos patogênicos”, afirma Marcos von Sperling, professor titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)“É preciso levar o esgoto até a ETERio não é lixeiraTemos que respeitar o direito à vida do ecossistema”, afirma o fundador do Projeto Manuelzão da UFMG, que propôs a Meta 2010 e luta pela revitalização da bacia, Apolo Heringer Lisboa.

E, se há respeito, o curso d’água respondePelo menos é o que relata o amigo do rio, como gosta de ser chamado Valter Valério, de 66, dono de um trailer de sanduíche no encontro dos rios Caeté-Sabará e Velhas, em Sabará“Se o poder público fizer mais, os peixes vão pular direto para a panela”, dizBiólogo do Projeto Manuelzão, Carlos Bernardo Mascarenhas afirma que, depois do início do tratamento do esgoto de BH, espécies como dourado e matrinxã já estão conseguindo subir o rio até próximo a Nova Lima“Mas, se para os peixes os resultados animam, para os bentons (invertebrados que vivem no fundo do rio) nem tantoÁreas preservadas têm uma riqueza de espécies que nem se compara com as demais regiões”, diz.