Por causa da contaminação por algas, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Governador Valadares, maior município da bacia, que capta diretamente do Rio Doce, iniciou estudos para trocar o manancial da cidade. Em outubro do ano passado, a propagação de cianobactérias, que se alimentam da matéria orgânica presente nos dejetos, fez com que as águas chegassem às casas com cheiro e gosto ruins. “Temos em torno de 120 cidades acima de Valadares que jogam o esgoto no Rio Doce. Quando as cianobactérias apareceram, aperfeiçoamos o tratamento, mas, se o problema persistir, vamos ter que captar água em outro manancial. Uma alternativa seria o Rio Suaçuí Pequeno”, afirma o diretor do SAAE, Carlos Henrique Dias de Miranda.
Embora o SAAE garanta que o tipo de alga encontrado não é tóxico e tenha anunciado R$ 16 milhões em investimentos no sistema, até hoje a população, com 263,6 mil habitantes, não engoliu bem a ideia de que a água estava potável. Gerente de uma farmácia em Valadares, Fabrício Garcia conta que estoques de soro e água mineral acabaram. “Deu muita diarreia no período. Muita gente passou mal. A água tinha um gosto e um cheiro muito fortes”, lembra. O colapso no abastecimento não é exclusividade de Governador Valadares, que, a propósito, também lança todo o esgoto que produz, puro, no Rio Doce. As 40 família de São Sebastião das Laranjeiras, distrito de Galileia, a 60 quilômetros, não podem mais usar as águas poluídas do Córrego Boa Vista e ficaram reféns de cisternas.
Piracicaba
O plano diretor de um dos principais afluentes do Doce, o Rio Piracicaba, cuja bacia envolve 21 cidades, aponta que, caso a destruição não tenha freio, em 2015 faltará água para os municípios. Atualmente, o Piracicaba é o que mais contribui para a poluição do Doce. “Mesmo com os produtos químicos, tem ficado mais difícil limpar a água”, afirma o presidente do comitê de bacia, Iusifith Chafith, em frente ao Rio Santa Bárbara, assoreado. O tributário passa pela mina de Brucutu, da Vale, a maior do mundo em capacidade inicial de produção.
A bacia do Piracicaba, que está entre as quatro para as quais o governo do estado vai direcionar, no total, R$ 430 milhões em ações de revitalização, atravessa um dos maiores complexos siderúrgicos e minerários da América Latina, passando por Ipatinga, Itabira e João Monlevade. Dados preliminares de um diagnóstico da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) mostram que quase 70% dos dejetos da população urbana do Piracicaba (estimada em 860 mil habitantes) são despejados in natura nos córregos. O impacto sobre a Bacia do Rio Doce não é somente na qualidade, mas também na quantidade dos recursos hídricos, como alerta o presidente do Instituto Pró-Rio Doce, Paulo Célio de Figueiredo, o Catatau. “Estamos perdendo volume de água, porque nascentes estão secando e o esgoto só aumenta”, diz.
Do alto do Pico do Ibituruna, cartão-postal de Valadares, se tem a dimensão exata desse problema. Os morros de pasto denunciam que a vegetação, fundamental para a preservação de nascentes, é parte do passado. Numa viagem pela bacia, além do pasto, plantações de eucalipto imperam, reforçando a estimativa do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Doce, de extinção de 90% da cobertura vegetal nativa, originalmente composta por mata atlântica. “A solução do Doce tem necessariamente que passar pelo reflorestamento”, reforça Catatau.
Ferros teme pelo seu maior tesouro
Valdivino, de 10 anos, faz o sinal da cruz e olha para Valter, de 16. É a senha para que os dois saltem da ponte sobre o Rio Santo Antônio, a diversão da meninada. Mais abaixo, Sinhana, com água pelas canelas, deixa a roupa quarar na pedra, enquanto ensaboa outra trouxa. Na sala de casa, Geraldo de Alvarenga, o “Nem Tocador de Sanfona”, prepara a tralha de pesca. “Pescaria é difícil: quando tem encomenda, não tem peixe”, resume, contando que costuma pegar surubim, corvina, piau amarelo e um peixe branco “‘disgramado’ de gostoso”. A vida em Sete Cachoeiras, distrito de Ferros, Região Central de Minas, flui na velocidade do Santo Antônio, afluente ainda preservado do Rio Doce. A tranquilidade do vilarejo só é interrompida quando alguém fala em pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). “Isso é palavrão aqui”, comenta Piedade Regiane no mercadinho.
Confira o depoimento de Nem Tocador de Sanfona sobre o Rio Santo Antônio
Constam na Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad) pelo menos sete processos de licenciamento para PCHs – usinas com produção de até 30 MW e barragem de até três quilômetros quadrados – no curso d’água, todas embargadas pela Justiça, a pedido do Ministério Público (MP) estadual. “Os licenciamentos ambientais estavam sendo conduzidos de forma fragmentada, sem considerar os efeitos cumulativos de uma central hidrelétrica com outra”, afirma o promotor responsável pelo caso, Francisco Generoso. “Em meio ambiente, um mais um não é igual a dois. O Santo Antônio é de altíssima prioridade de conservação. O andirá, por exemplo, é um peixe restrito a esta região do planeta”, afirma Generoso.
A Semad, um dos réus da ação, elaborou depois da intervenção judicial uma avaliação ambiental integrada do Santo Antônio. Enquanto o cenário é de indefinição, o temor do impacto ronda Sete Cachoeiras, cuja história se confunde com a do Rio Santo Antônio. O vilarejo tem cerca de 400 famílias e está num trecho de menos de cinco quilômetros de onde se pretende instalar três PCHs. “Tem gente que vem de longe para o nosso rio. É a maior riqueza que a gente tem. E, com essas barragens, é capaz de atrapalhar nosso lugar”, diz Nem. “O rio é meu ganha-pão. Todo dia venho para cá lavar roupa”, conta Sinhana, nascida Ana das Graças Rosa e Silva, de 59.
Dona do restaurante e da hospedaria do distrito, Ana Nazaré Alves, de 44, engrossa o coro: “Aqui a gente vive com pouco. Se tirarem o rio, o que vamos fazer?” Integrante do Comitê da Sub-Bacia Hidrográfica do Santo Antônio, Felipe Benício Pedro ressalta que, além das PCHs, a mineração tem exercido forte pressão sobre o curso d’água. “Conceição do Mato Dentro, na parte alta da bacia, está bem ameaçada. Além disso, está prevista a construção de três minerodutos usando a água do Santo Antônio e afluentes. A questão é que este é dos poucos que entregam água limpa ao Rio Doce”, alerta.
Segundo o superintendente de Regularização Ambiental da Semad, Daniel Medeiros de Souza, a avaliação ambiental integrada do Santo Antônio está pronta e, para começar a valer, depende de aprovação nos conselhos regionais do Jequitinhonha e do Leste de Minas. “O principal problema apontado foi em relação aos peixes. Os empreendedores terão que se adequar em relação a isso”, afirma.
Nem Tocador de Sanfona e seu instrumento musical
Degradação
A Bacia do Rio Doce foi a que mais piorou em relação ao Índice de Qualidade das Águas, que reflete a contaminação por esgoto, segundo o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). As amostras com IQA bom caíram de 35% para 17% entre 2010 e 2011. A contaminação por tóxicos e metais pesados também piorou. Índices médio e alto subiram de 3% para 11%.
Resgate
A Agência de Bacia Hidrográfica do Rio Doce começa este ano a receber recursos da cobrança pelo uso da água. A arrecadação prevista é de R$ 47 milhões nos próximos quatro anos, para emprego exclusivo na bacia. Indústrias, mineradoras e concessionárias de abastecimento pagarão R$ 0,018 a cada mil litros de água retirada e R$ 0,10 por quilo de carga orgânica lançada.