Jornal Estado de Minas

Vidas estão divididas pela inundação de represa em Minas

Moradores relembram a formação da represa de Furnas

Junia Oliveira Flávia Ayer
Aimorés se ressente da represa que criou ilhas onde havia correnteza - Foto: marcos michelin/em/d.a press


Carmo do Rio Claro, Guapé, São José da Barra e Aimorés – Nos tempos de colégio em Juiz de Fora, na Zona da Mata, o menino ouviu um professor de geografia falar pela primeira vez de “um tal potencial hidrelétrico do Rio Grande”“Achava que era longe, lá para os lados da Amazônia, mas era bem na minha porta”, conta o fazendeiro Antônio Adauto Leite, de 84 anos, de Carmo do Rio Claro, no Sul de MinasA memória ainda bem viva lembra com exatidão: a fazenda do Córrego Bonito, onde nasceram ele e os irmãos, e por onde passava o Rio Sapucaí, afluente do Grande, foi inundada às 3h de 9 de janeiro de 1963, como parte da represa de Furnas, em Carmo do Rio Claro, a 373 quilômetros de BHNas fotos em preto e branco, as lembranças do que ficou debaixo d’água: “Valeu a pena para quem nasceu agoraO Lago de Furnas é muito apreciado, considerado o mar que Minas não teveMas sofremos muito”.

Também está na memória do aposentado Diomar Siqueira, de 77, os tempos em que o Rio Grande corria livre por Guapé, que foi 70% inundada para dar lugar a FurnasNo meio do lago, a imagem de São Francisco não deixa ninguém esquecer que debaixo daquele aguaceiro está a antiga igreja matriz “Muita gente vem a Guapé para ver a represaNa área de turismo melhorou, a cidade é quatro vezes maior do que era, evoluiu muito, mas muita gente desgostou e foi embora”, conta.

Os relatos da tristeza que tomou conta da população nas cidades inundadas em nome do progresso são os mesmos, não importa o lugarMas, se a tristeza ainda é lembrada pelos mais velhos, nos dias atuais a represa tem outro significado“Quando o lago surgiu, na década de 1960, foi o caos
Inundou as melhores terras e ninguém sabia produzir no cerradoMas hoje é o rio da integração dos municípios em várias frentes de trabalho e benefício conjunto, inclusive de compensação financeira, repassada às prefeituras”, afirma o presidente do Comitê da Bacia do Entorno do Reservatório de Furnas, Fausto Costa

Na Bacia do Rio Grande, o sentimento pela hidrelétrica que tem perímetro de 3,5 mil quilômetros e 1,4 mil quilômetros quadrados de área em 34 municípios, se divide entre o ódio e o amorNa primeira relação, o pesar de quem viveu o trauma de ter que deixar a própria terraNa segunda, a superação de uma situação consolidada há quase 50 anos.
 
Uma cidade que perdeu seu rio

Em outros pontos do estado, onde o progresso bate à porta, o inconformismo que chega com as águas de uma grande represa é o que predominaÉ o que ocorre em Aimorés, município pacato de 25 mil habitantes na divisa de Minas com o Espírito Santo, que talvez entre para a história como a cidade que perdeu seu rioAinda assim, o pescador José Lourenço da Silva Filho, de 59 anos, o Zil, não desiste de procurá-lo“O rio morreu para nós, mas a gente continua atrás dele”, conta em frente ao vazio antes banhado pelo Rio DoceA construção da Usina de Aimorés – Hidrelétrica Eliezer Batista –, que começou a operar em 2005, desviou o curso d’água da cidadeDesde então, os peixes diminuíram, problemas com enchentes apareceram e uma nuvem de insatisfação paira sobre os moradores
O Ministério Público Federal abriu inquérito e tenta na Justiça reparar os danos ao município.

Na calha onde corria o Doce, hoje passam apenas as águas do Rio Manhuaçu, um dos afluentesA visão do alto do morro é de um filete cortando uma superfície seca, num trecho de seis quilômetros“Desde os 9 anos, já estava nadando e pescando neste rio, ele foi a nossa escolaAgora, está virando ilha pura e já estou fazendo 60 anosVou embora e provavelmente não vou ver como vai ficar”, lamenta o pescador, que vive com um salário mínimo e a cesta básica do consórcio formado pela mineiradora Vale e a Cemig, que tem a concessão do empreendimento“Criei 10 filhos com dinheiro da pescaHoje, o jeito é pegar bagre africano e vender a R$ 2 o quilo”, afirma Zil.

O procurador de Justiça Bruno Costa Magalhães prepara ação para que os danos ao meio ambiente e à comunidade sejam reparados “O estudo de impacto ambiental não havia aventado todo esse impactoA fauna de peixes está bem abaixo e o que havia sido mostrado era que Aimorés seria uma espécie de Veneza brasileiraO Ibama já multou o consórcio por causa dessa situação e estamos concluindo a ação civil”, afirmaEm nota, o consórcio informa que um estudo está sendo contratado com uma universidade para avaliar como reduzir impactos causados no rioTambém informa que a usina conta com o sistema de transposição de peixes.