Jornal Estado de Minas

Em meio ao mar de devastação, brota a esperança de água limpa em Minas

Flávia Ayer Junia Oliveira

Seiscentas e dez mil mudas por ano saem das estufas do Instituto Terra, no Vale do Rio Doce, para reflorestar a região. O resultado é o Córrego Bulcão recuperado e a meta, fazer o mesmo com 1,5 mil nascentes - Foto: MARCOS MICHELIN/EM/D.A PRESS

 

 

Aimorés e Coração de Jesus – Outubro de 1996, Norte de MinasRevoltado, José Nelson de Andrade percorre o leito seco do Córrego Riachão, nos fundos de sua propriedade, em Coração de JesusO curso d’água havia sido sepultado pela instalação de bombas e pivôs próximo à nascenteDezesseis anos depois, muita coisa mudouNa última quinta-feira, o produtor rural não continha a emoção ao ver o tributário do Velho Chico cheio, mesmo durante estiagem severa“É um rio milagroso”, constataAs mesmas águas do otimismo que correm pelo Riachão – um dos primeiros alvos da chamada “guerra pela água” no país – brotam das nascentes recuperadas do Córrego Bulcão, em Aimorés


 no Vale do Rio DoceNo encerramento da série Rios de Minas, o EM apresenta exemplos de recuperação ambiental que, mesmo em meio a um mar de devastação, enchem de esperança cursos d’água nos quatro cantos das GeraisJunto a eles, surgem medidas de austeridade que permitem sonhar com um horizonte mais promissor para nossas águasUma delas vem do Ministério Público estadual, que, três dias depois de o EM denunciar a situação do lixão que envenena as margens do Rio das Velhas, em Nova Lima, na Grande BH, propôs ação de improbidade administrativa contra responsáveis por
três prefeituras, por não solucionar o problema.

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Uma história de abuso, confronto, mobilização e vitória ambiental corre pelo leito do Riachão, no Norte de Minas

Rio perene na década de 1990, o curso d’água parou de correr por causa da captação excessiva de água para irrigação, próximo à sua nascente, em Montes ClarosQuem sugava os recursos já nas cabeceiras condenava à seca cerca de 3 mil pequenos produtores ao longo de 96 quilômetros da baciaNão era de surpreender que eles ameaçassem desativar os equipamentos de irrigação com as próprias mãosNa outra frente, corria a versão de que homens armados com rifles patrulhavam as bombas e pivôs centraisO caso ganhou repercussão nacional com reportagem do Estado de Minas e, em outubro de 2003, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) lacrou as bombas, encerrando uma luta que se arrastou por uma décadaA natureza respondeu: o leito renasceu em água e peixes

“A mobilização da comunidade junto aos órgãos ambientais foi fundamentalE, nos últimos anos, também houve ações importantes, como a construção de barraginhas para contenção de água de chuva”, diz o ambientalista Carlos Dayrell, do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA), que, em 2000, fez greve de sede como parte da luta para salvar o RiachãoQuem também passou sede por causa do córrego  foi o agricultor Joaquim Tarcísio Gusmão, o “Coca”, que mora na comunidade de Pau D’Óleo, perto da nascente, em Montes Claros“Valeu a pena
Hoje, me sinto aliviado de ver o rio correr de novo”, comemoraMas, mineiro que é, José Nelson não deixa de desconfiar“Estão vendendo chácaras desordenadamente Daqui a pouco, não vai ter água para tanta gente”, alerta.

Milagre

O nome é Fazenda Bulcão, mas também poderia ser chamada de terra do milagre, mesmo que ele tenha sido conquistado à custa de muito trabalho Graças ao esforço, um pasto de 676 hectares, equivalente a 676 campos de futebol, se converteu, em uma década, em floresta de mata atlântica onde brotam nove nascentes, em Aimorés, no Vale do Rio Doce, divisa com o Espírito SantoFundado pelo fotógrafo Sebastião Salgado e por sua mulher, Lélia, em 1999, o Instituto Terra é referência em recuperação ambiental, com ações que extrapolam a reserva particular de patrimônio natural (RPPN), a primeira em área degradada, na fazenda do pai de SebastiãoUma das frentes do Instituto Terra, o projeto Olhos D’Água pretende repetir em propriedades locais a experiência bem-sucedida da Fazenda Bulcão e, até 2014, recuperar todas as cerca de 1,5 mil nascentes da região.


O esteio do projeto é a recomposição da cobertura vegetal, permitindo a infiltração da água no soloAs plantas são do instituto, que produz 610 mil mudas ao anoMuitos fazendeiros aderiram à causa, pois a falta d’água já é realidade nas redondezas“A satisfação maior é quando vemos a água brotando novamenteSe o produtor rural acredita na ideia, ele passa a ser um produtor de água”, empolga-se Marcelino Mendonça, o caçador de nascentes do instituto, à beira do Córrego Bulcão, um filete de água na época em que ali era pastoMês passado, a turma do instituto estava feliz da vida com o aparecimento de uma jaguatirica, uma das 30 espécies de mamíferos já avistadas ali, além das 173 de aves, 16 de répteis e 15 de anfíbios “Provamos que é possívelAgora, as pessoas têm que se sensibilizar e conservar”, ressalta o analista ambiental Jaeder Lopes Vieira

Manuelzão

Quando o assunto é revitalização de rios, o Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem lugar de destaque Criado em 1997, encampou a luta pelo Rio das Velhas e conseguiu, por meio da mobilização das comunidades e de articulação política, que o governo assumisse a meta de permitir pescar, nadar e navegar no Velhas na Grande BHUm dos fundadores do projeto, o médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, ressalta que resultados são alcançados a partir de ações combinadas“Primeiro, temos que acabar com o hábito de jogar tudo no rio, nessa economia que quer ganhar dinheiro arrebentando com o meio ambiente”, diz


Apolo ressalta também que salvar os rios não é trabalho de poucos“O Manuelzão nos ensinou que é preciso fazer mobilização social, ter metas de qualidade que todos entendam – nadar, navegar e pescar – e saber atuar politicamente, para não se tornar um movimento de técnicos burocráticos”, ensina“Tenho que raciocinar em termos de bacia hidrográfica e entender que, se jogo esgoto num pequeno córrego, o resto da bacia sofrerá o impacto”, afirma. 

 

BONS EXEMPLOS PELO MUNDO

 

Rio Sena – Paris
No século 18, mais de 1 milhão de pessoas morreram por doenças de veiculação hídrica em ParisHá 50 anos o curso d’água foi declarado praticamente mortoO tratamento de esgoto foi o principal foco de ação Nos anos 1950, havia apenas 11 estações na bacia do SenaEm 2008, quase 2 mil estavam em funcionamento, graças a investimento de mais de
2,1 bilhões de euros.

Rio Tâmisa – Londres
Considerado morto em 1947, o Tâmisa passou por diversas experiências de despoluiçãoAlém do tratamento do esgoto a partir da década de 1960, nos anos 1990 uma solução de peróxido de hidrogênio passou a ser liberada no curso, transformando-se em moléculas de oxigênio e água Hoje, há mais de 100 espécies de peixes no rio, um dos cinco estuários mais importantes para a vida selvagemGolfinhos, baleias-piloto e focas podem ser vistos no Centro de Londres.
 
Rio Cheonggyecheon – Seul
Com 11 quilômetros de extensão, é o principal curso d’água da cidade, centro econômico da Coreia do SulNa década de 1970 o rio havia sido coberto por avenidas e viadutosAs estruturas foram demolidas em 2003 e o curso d’água, restauradoParte da água vem de uma estação subterrânea e outra, do rio.