Sexta-feira, a Inglaterra abre oficialmente em Londres os Jogos Olímpicos 2012. Pernas, braços, mãos, músculos e mentes entrarão em cena na santa batalha por medalhas. Nos tablados, nas quadras, na água, nas pistas de corrida, nos estádios e ginásios estarão atletas preparados anos a fio para competir e encher de orgulho países e povos, independentemente da raça, da ideologia ou da condição social. A maioria das competições reproduz fielmente ações da vida real, nas quais trabalhadores anônimos gastam energia em busca da sobrevivência ou do conforto da família. A semelhança entre o esforço do levantador de peso e o do carregador de sacos de areia e cimento Rodrigo não é mera coincidência. Assim como o dos competidores do revezamento 4x100 com a correria dos lixeiros Washington, Ulisses, Paulo César e Jean Carlos. E Ivanilton, o barqueiro do Parque Municipal, é feliz mesmo não estando nas águas londrinas remando pelo orgulho esportivo? Ou como reagiria o office boy ciclista Raimundo se alguém lhe dissesse que pedala mais rápido ou igual aos competidores olímpicos? O esporte imita a vida e a vida imita o esporte. E aqui estão os medalhistas da vida.
Para entrar nesta equipe, não há exigência de peso, altura nem idade. Os únicos requisitos são fôlego e (muita) disposição numa maratona digna de Usain Bolt, primeiro velocista a quebrar três recordes mundiais em uma Olimpíada, em Pequim, em 2008. Diariamente, são 20 quilômetros de corrida em meio a obstáculos urbanos, arremesso de quatro toneladas de lixo e incontáveis saltos da boleia do caminhão. “O segredo é nunca trazer problema de casa e, aqui, é um olhando pelo outro”, revela o experiente Buiú, na identidade Washington Luiz de Miranda Rosa, de 42 anos, a metade a Serviço da Superintendência de Limpeza Urbana de BH. Ele se reveza com Paulo César Marriel, de 54, Jean Carlos Vênancio, de 39, e Ulisses Coelho, de 38, na rotina vitoriosa contra a sujeira na capital. Assim como os velocistas, os lixeiros correm contra o relógio. “Enquanto o caminhão leva o lixo para o aterro, temos 1h15 para juntar os sacos de 20 quarteirões. Mas era pior, quando o caminhão não tinha compressor, a gente corria 80 quilômetros por dia”, conta Paulo César. Tanto esforço permite que Jean abra exceção quase diária de refrigerante e salgado no cardápio, bem diferente da alimentação balanceada dos atletas.
Nesse ritmo, lixeiros consomem 50% a mais de calorias que um adulto sedentário, o que exige cuidados com a hidratação. Esse problema Paulo César resolve fácil, com água da torneira dos moradores, a quem Buiú, que voa para alcançar o caminhão, tem grande apreço. “A medalha do coletor é o carinho da comunidade.” Membro da equipe há três dias, Ulisses, de físico mais avantajado, está lutando para ganhar essa medalha. “Minha coxa dói e, quando chego em casa, não dou conta de ir nem na padaria.” Mas Buiú acredita no potencial do companheiro: “Ele é humilde e atencioso.”
Força à base de arroz e feijão
Aos 20 anos, o cazaque (natural do Cazaquistão) Ilya Ilin levantou 180kg no arranco e 226kg no arremesso para ganhar o ouro na Olimpíada de Pequim, em 2008. Mas como esse esforço não é diário, pode-se dizer que o carregador Rodrigo Mendes de Carvalho, de 29 anos, mesmo não levantando o mesmo peso, é merecedor de uma medalha no levantamento de peso. Todos dias, durante oito horas de trabalho em um depósito de material de construção na Avenida Barão Homem de Melo, Oeste de BH, ele levanta e carrega pelo menos seis toneladas, não de uma só vez, é claro. Rodrigo é um dos trabalhadores contratados pelo dono do depósito para pôr nos caminhões as encomendas dos clientes. “Carrego pelo menos 100 sacos de areia, de 60kg, um por vez, em cada jornada de oito horas”. Orgulha-se de “ombrar” dois sacos de cimento, de 50kg cada, sem gemer. Essa pesada tarefa rende a ele cerca de R$ 700 mensais, única renda para alimentar a mulher e as duas filhas, Sara, de 4, e Lara, de 6. A família mora em barraco de dois cômodos no Bairro Jardim América. “É moradia de favor.”
Rodrigo gaba-se de nunca ter sentido dor ou qualquer desconforto na coluna. Sua alimentação para suportar tamanha carga é composta basicamente de arroz, feijão, carne e macarrão. “Principalmente massa. Adoro”. Mas o esporte favorito de Rodrigo não é levantamento de peso. “Gosto mesmo é de luta. Tenho 250 filmes (DVDs) em casa, entre os quais todos os estrelados por Jean Claude van Dame.”Mas a medalha com a qual Rodrigo sonha não está no levantamento de peso nem em nenhuma modalidade de luta. “O que quero é a oportunidade de dar às minhas filhas tudo o que não tive.”
O office boy dos pedais
Raimundo Rodrigues Neves, de 54 anos, nasceu no Piauí, mora há 30 anos em Belo Horizonte, tem o apelido de “russo da bike” e só nos últimos cinco anos pedalou o suficiente para dar quatro voltas na Terra. A adrenalina marca a rotina do office boy dos pedais, que sai de casa, no Bairro Guarani, na Região Norte, e retorna depois de percorrer todos os dias cerca de 100 quilômetros pela capital. Russo nunca ouviu falar em Julien Absalon ou Sabine Spitz, medalhistas olímpicos do mountain bike, mas já foi aconselhado a investir nas competições.
Ele prefere focar na entrega de documentos pelas ladeiras de BH, atividade que lhe rende R$ 1 mil por mês. “Aqui é cheio de morro, não dá para fazer corpo mole, mas o que atrapalha a gente é essa ‘carraiada’”, conta, competindo junto de automóveis e ônibus em plena Praça Sete, no Centro. O preparo físico veio com a prática e do cuidado da esposa. “Ela cuida muito bem de mim. Minhas pernas nem ficam doloridas”, diz. Raimundo sempre amou andar de bicicleta e adotou a magrela como companheira de trabalho depois de ficar desempregado, há cinco anos.
A recompensa vem em forma de saúde e disposição: difícil o atleta do cotidiano ficar gripado. O problema é quando o trânsito aperta, o motorista não respeita e quem paga o pato é o coitado do Russo. “Já caí duas vezes, quebrei tornozelo, o dedo da mão esquerda e quatro costelas.” Tal como atleta, ele precisou de ficar afastado, mas sem tantas regalias e apenas com a ajuda da Previdência. Mesmo com os poréns, Russo não desanima e, no mais nobre espírito olímpico, volta para a dura competição do cotidiano. “A minha meta é sobreviver, comprar um lugar para morar e pedalar até quando Deus quiser.”
Braços sincronizados
Há três décadas e meia, Ivanilton Almeida Rodrigues, de 53 anos, trabalha no Parque Municipal, Centro de BH, como coordenador dos pequenos barcos alugados a visitantes no Lago dos Ventos. Tem ainda como função orientar e até ensinar quem deseja remar na água turva e coalhada de gordas e preguiçosas carpas. Quando o movimento está fraco, ele sai sozinho e em quatro minutos dá a volta no lago, numa distância calculada a grosso modo em um quilômetro.
Nada comparável ao desempenho do búlgaro Olaf Tufte, de 36, ganhador do ouro no skiff (modalidade de remo) individual nos Jogos de Pequim, em 2008. “Já vi o pessoal treinando na Pampulha. Se pegar um pouco da coordenação, com uma rápida adaptação a gente desembaralha”. De postura e coordenação Ivanilton entende. São as orientações básicas que ele passa aos aventureiros de primeira viagem no Lago dos Ventos, como fez na sexta-feira com as meninas Joyce do Espírito Santo, de 10, e Michele Lima, de 8.
Comissionado, Ivanilton tira em torno de R$ 2 mil mensais no serviço, que é uma concessão municipal. Com esse dinheiro, ergueu uma casa em Vespasiano e criou os cinco filhos (quatro mulheres e um homem). A energia vem da boa saúde e da alimentação, equilibrada à base de frutas, legumes, arroz e feijão, sem muita gordura. “Como meu domingo é a segunda-feira (dia em que o parque fechas as portas), arrisco um churrasquinho em família.” Além de ensinar e remar, ele constrói barcos. Ele não é atleta e não vai aos Jogos londrinos, mas seu espírito olímpico já é medalhista: “Meu ouro são os filhos e os quatro netos. Graças a Deus, só me dão alegrias.”