O esmalte não para nas unhas, a ponta dos dedos vive ralada e as marcas das ferramentas estão impressas na pele das mãos. Mesmo com esses pequenos sofrimentos diários, a restauradora e artesã Hercília Batista Herculano segue firme, com bom humor e dedicação, no ofício de produzir as palmas barrocas, tradição que chegou ao país com os portugueses, no século 18, e ganhou força na atmosfera colonial de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com mais de 30 anos de experiência na elaboração dos refinados buquês de flores, cuja matéria-prima é o cobre, Hercília tem agora um estímulo a mais – além do encantamento natural que o trabalho causa em moradores e visitantes – para dar vazão à sua criatividade. Por iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura, o modo de fazer as palmas está no caminho de se tornar patrimônio imaterial de Sabará, reconhecimento que, segundo os artesãos, vai valorizar ainda mais a atividade e gerar renda.
“É um passo muito importante para todos nós. A produção das palmas barrocas foi resgatada na cidade na década de 1980 e, por meio de oficinas, já formou mão de obra”, disse Hercília, na tarde de ontem, diante dos casarões do Centro Histórico da cidade, que completa 301 anos de elevação a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. Sua trajetória começou no casamento, quando ganhou de presente de uma amiga uma palma feita de papel por uma das guardiãs da atividade no município, dona Carmelita Monteiro, já falecida. “Achei a peça bem bonita e, curiosa, tratei de desmontá-la no ano seguinte para ver como era sua elaboração”, recorda-se Hercília, que se formou em restauração na Fundação de Artes de Ouro Preto (Faop) e já fez mais de 1 mil flores que enfeitam oratórios, mesas, casamentos e outras cerimônias. “Já estou até sem as digitais”, brinca.
Embora seja uma antiga reivindicação dos artesãos, pois o reconhecimento como patrimônio imaterial significará um selo de qualidade para o produto, o processo na prefeitura começou nesta semana, com a licitação para escolha da empresa responsável pelo dossiê visando o futuro registro. O secretário municipal de Cultura, Sérgio Alexandre, explica que, na sequência, a documentação (pesquisa histórica, depoimentos etc.) será analisada pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultura e Natural. “O patrimônio imaterial é a identidade do povo e queremos que as palmas se tornem marca registrada de Sabará, assim como os sinos estão para São João del-Rei. Pretendemos criar até uma logomarca”, compara.
Zarlei conta que, nos primórdios, as palmas, usadas nos altares e adorno dos andores das procissões, eram elaboradas com papel. Com o passar do tempo, outros materiais foram incorporados. “Hoje, há muita gente fazendo esse trabalho, mas podemos destacar um grupo de 15 moradores de Sabará desenvolvendo com qualidade”, acredita o secretário, certo de que o desdobramento desse resgate cultural será a formação de uma cooperativa.
Fascínio apura refinamento
Na sala de sua casa, na Rua São Francisco, no Centro Histórico, a artesã Dirléia Conceição Neves Peixoto prima pelo refinamento das peças e se esmera no corte das pequenas pétalas e flores. Nessa tarefa (veja quadro) que dá origem às palmas, ela conta com a ajuda do marido, o aposentado Marcílio José Peixoto. Na mesa de jantar, dentro da cristaleira e sobre outros móveis, os olhos encontram o brilho reluzente dos buquês, alguns amarrados, na base, com fitas douradas. Ela aprendeu o ofício durante um curso no Museu do Ouro, no Centro Histórico de Sabará, e já vivia fascinada com os arranjos de autoria de dona Carmelita. “A experiência me ensinou que se trata de uma tarefa que requer paciência e senso artístico”, afirma Dirléia.
Corta, recorta, boleia, amarra com arame… As horas vão passando e Dirléia põe sobre a mesa as obras de arte. “Recebo encomendas de todo canto. Para festas, casamentos, presentes, enfim, para finalidades diversas”, diz a artesã, mostrando a imagem do Sagrado Coração de Jesus emoldurada pelas flores. Uma das etapas mais demoradas do processo é o banho de ouro, geralmente a cargo de empresas em BH. “O reconhecimento como patrimônio imaterial será positivo, principalmente pela visibilidade que vai permitir”, revela.
Já na sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, os visitantes encontram um grupo de mulheres vendendo as palmas e outros produtos. Entre elas, Maria Marta Dias Nunes, viúva, que se dedica à elaboração das peças há 13 anos. “Esperamos esse registro há muito tempo. Ele será importante para que a tradição não se perca”, acredita Marta, que trabalha com Nilza Santos, Neuza Santos e Efigênia Pereira. “Estamos aqui sempre no mês de julho, a convite, mostrando essa tradição que nasceu em Viana do Castelo, em Portugal” conta a professora aposentada que gosta de apresentar a versão das palmas também em tecido, como é costume nas terras d’além-mar.
Como elas são feitas
- Em primeiro lugar, é preciso cortar a lâmina de cobre em tiras
- Em seguida, as tiras serão levadas ao fogão a gás, num processo denominado “queima”, o que torna o metal mais macio e maleável
- Com uma ferramenta chamada boleador, o artesão vai dando formato às flores. Para as folhas, será usado o frisador
- O próximo passo será mandar para uma empresa, a fim de dar o banho de ouro ou prata nas peças
- A última etapa será fazer as palmas, amarrando as flores e folhas com arame dourado e um cabo no mesmo tom. O acabamento pode ser com um laço dourado
Fonte: Dirléia Conceição Neves Peixoto
Diversidade
A criatividade dos artesãos de Sabará não tem limite e, para diversificar a produção, as lâminas de cobre se transformam ainda em terços, colares, brincos, medalhões, resplendor de imagens de santos, pulseiras, entre outros. Alguns fazem os suportes de madeira com pátina, mas o usual são cabos, como os das flores. “Há várias releituras das palmas barrocas originais e há artesãos que fazem até de tecido, embora o metal seja a nossa marca registrada”, explica o secretário municipal de Cultura, Sérgio Alexandre. Todas as peças trazem, como motivo, as flores que enchem os olhos de qualquer um. Há produtos de tamanhos e preços variados.