Jornal Estado de Minas

Educadora que denunciou racismo contra criança negra fala da dificuldade de pedir demissão

Thiago Lemos
"Aquela senhora, já com 54 anos, deve ter humilhado muitas pessoas e agora chegou a hora de pôr um fim nisso" - Foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press
"Não fiz mais do que a minha obrigaçãoNão entendo como um méritoEm qualquer outra situação de racismo, eu me posicionaria da mesma forma, fosse na rua, na minha vizinhança ou na escola, como ocorreuFoi uma obrigação de cidadã, reforçada pela responsabilidade de ser uma educadora.” O posicionamento firme contra o preconceito é da professora ainda em formação Denise Cristina Pereira Aragão, de 34 anosNo dia 10 de julho, ela pediu demissão da escola onde trabalhava em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por considerar que a direção da instituição se omitiu diante de declarações racistas da avó de um aluno contra uma criança negra de 4 anos, também estudante da unidade.

Revoltada com o fato de o neto ter dançado quadrilha com uma garota negra, colega de sala do menino, Maria Pereira Campos da Silva, de 54, teria chegado ao Centro de Educação Infantil Emília repreendendo a professora que escolheu os pares da festaSegundo o relato da professora, a mulher disparou as ofensas já no portão da escola: “Foi um absurdo você ter colocado essa preta horrorosa para dançar com meu neto”, conta Denise, com os olhos cheios de lágrimas, reproduzindo o que disse ter ouvido da mulherNa sala de vídeo, onde todas as crianças estavam reunidas, a agressora teria continuado as humilhaçõesDiante da polícia, porém, ela negou as ofensas.

Depois do episódio, Denise Cristina diz que procurou a direção da unidade escolar para saber qual providência seria adotadaA resposta, segundo ela, surpreendeu tanto quanto o ato preconceituoso: “A diretora disse que nada seria feito, que qualquer escola tem casos de preconceito e que, se ela fosse reagir toda vez que isso ocorresse, não teria mais alunos”A declaração foi o estopim para professora pedir o desligamento da escola e comunicar à família da menina o que havia acontecido.

A decisão de deixar o emprego não foi fácil, revela Denise, que disse ter chorado muito no caminho entre a escola e sua casaFoi para ela o maior desafio da curta carreira como educadora, iniciada com estágios no início de 2010
Ela ligou para amigos e fez consultas na internet com medo de que, de alguma maneira, tivesse tomado a decisão errada ao deixar a instituiçãoAinda se calou por dois dias, à espera de que a própria escola contasse o que havia ocorrido para os pais da meninaPorém, diante do silêncio da instituição, ela resolveu agir.

Atitude que trouxe preocupaçõesNo apartamento simples, de três quartos, onde vive com os três filhos, em um conjunto no Bairro Novo Riacho, em Contagem, ela reúne forças para superar o episódio e traça planos para o futuro profissionalAfinal, era com o salário de pouco mais de R$ 1 mil que ganhava para trabalhar em dois turnos que ela pagava as despesas do curso de graduação em pedagogia, já no sexto períodoHá 12 dias, ela divide o tempo entre os cuidados com a família e a preocupação com a renda que deixou de receber.

Apesar das dificuldades financeiras, ela não se arrepende“Se a escola tem esse pensamento, não é lá que eu quero trabalharVai contra tudo o que eu penso como cidadã e educadora”Viúva pela segunda vez há nove meses, os gastos com o apartamento e os três filhos, de 8, 14 e 15 anos, não fazem parte da angústia, já que são custeados pelas pensões que recebe do pai da filha mais velha e do ex-marido, com quem teve um menino e uma menina.

Vinda de uma família onde a descendência italiana era dominante no lado paterno e de negros por parte da mãe, Denise é a filha caçulaDurante as mais de três décadas de vida, o tom escuro da sua pele nunca foi alvo de preconceito, garante
Mas já teve de lidar com a questão quando a filha mais nova foi alvo de comentários pejorativos que partiram de uma colega.

Integridade é arma contra o preconceito

A gravidez aos 19 anos impediu que Denise Cristina Pereira Aragão concluísse os estudos no tempo convencionalO segundo grau completo só veio aos 25 anos, por meio do Projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA)A atração pelo magistério veio por influência da irmã mais velha, pedagogaJá a indignação contra o racismo, para ela, faz parte da educação e do caráterDenise garante que não é pelo fato de ter descendência negra que se revoltou diante do caso na escola, mas, sim, por entender que todos são iguais.

Se a postura firme sempre fez parte da vida dela, Denise ressalta que, como educadora, tem compromisso fundamental com a formação das crianças, principalmente nos primeiros anos de aprendizadoE defende que a questão racial deve ser debatida com muita clareza na escola e nas famílias, para evitar a intolerância racial.

“Por onde passei, sempre notei a escassez de alunos negrosA garota que foi vítima da intolerância era a única negra da salaQuando ela chegou, em abril, fui questionada por algumas crianças porque ela era ‘diferente’Expliquei tudo, sobre a África, como os negros chegaram ao Brasil, a importância deles na construção do país e do respeito, que tem de ser igual para todos”

A professora critica a falta de uma disciplina nos cursos de graduação em pedagogia que ensine os educadores a lidar com a questão racialEla acredita que a consciência nas crianças deve ser despertada pelos pais, mas que é preciso haver o reforço nas escolas, já que é nesse espaço que elas vão conviver com pessoas de raças diferentes.

Apelo à conscientização

Passadas duas semanas desde que o fato ganhou os noticiários, o delegado Juarez Gomes da 4ª Delegacia de Polícia de Contagem, concluiu na sexta-feira o inquérito sobre as ofensas sofridas pela criança de 4 anosEle indiciou por injúria qualificada Maria Pereira da Silva e enviou os documentos à JustiçaA professora Denise Cristina minimiza a importância da punição, dizendo que o mais importante foi o alerta gerado pelo caso, e espera que tudo colabore para a reflexão das pessoas e também para que os ofendidos busquem e defendam seus diretos.

A professora lamenta que o preconceito racial ainda seja comum na sociedadeUm luta que ela acredita estar só no começoPara a educadora, cada esforço, mesmo que isolado, como o dela, é fundamental para que a intolerância com as diferenças chegue ao fim“Penso que Deus não colocou essa situação na minha mão sem um propósitoEle sabia que eu não iria ficar caladaAquela senhora, já com 54 anos, deve ter humilhado muitas pessoas e agora chegou a hora de pôr um fim nisso.”