Jornal Estado de Minas

Injustiça histórica para não esquecer

Prefeitura de Araguari cria roteiro turístico e relembra os 75 anos do caso dos irmãos Naves

Eles foram condenados por assassinato de homem que não tinha morrido

Araguari – A obra em ritmo acelerado no sobrado de número 1.098 da Rua Coronel José Ferreira Alves, em Araguari, transformará o centenário casarão num moderno teatro
Por ironia, o novo cartão-postal será palco de peça inspirada num drama que ocorreu no mesmo imóvel, antigo fórum e cadeia da cidade do Triângulo MineiroFoi ali que se desenrolou boa parte do chamado caso dos irmãos Naves, tido por muitos juristas como o maior erro do Judiciário brasileiro no século passadoSebastião e Joaquim Naves foram torturados e injustamente condenados sob a acusação de ter roubado e matado o compadre deles, Benedito PereiraA reforma do casarão e a encenação de peça fazem parte de roteiro turístico recém-criado pela prefeitura inspirado no casoO enredo envolvendo os irmãos Naves começou em 1937 e só foi esclarecido em 1952, quando o compadre Benedito, que ficou 15 anos desaparecido, voltou ao município Em alusão aos 75 anos do início do martírio dos réus e aos 60 anos do fim do sofrimento da família Naves, o Estado de Minas relembra o caso que entrou para a história jurídica brasileira e detalha os planos do município para que o erro não seja apagado da memória do país.

Enredo de dívidas,  fuga e torturas

A data é 29 de novembro de 1937Poucas semanas depois de Getúlio Vargas orquestrar o golpe que instituiu o Estado Novo, os irmãos Joaquim e Sebastião Naves, humildes e semianalfabetos, entraram afoitos na delegacia de Araguari para informar aos policiais que Benedito Pereira, compadre deles, havia desaparecido com pouco mais de 90 contos de réis – cerca de R$ 300 milO tenente Chico Vieira, conhecido tanto pelo rigor quanto pela farda impecável, foi transferido de Belo Horizonte para conduzir as investigações.

O delegado-militar ouviu dos irmãos que Benedito era sócio deles num caminhão Ford V-8, usado no transporte de grãos, e que havia conseguido empréstimo com familiares e amigos para comprar 2.047 sacas de arrozO desejo do compadre era lucrar com a alta do produto, mas o preço do alimento despencou e Benedito foi obrigado a vendê-lo pelos 90 contos de réisO valor era insuficiente para quitar os empréstimos
Talvez esse tenha sido o motivo de seu sumiço

Para o tenente, porém, a linha de investigação foi uma só: os Naves cometeram latrocínio – matar para roubar – contra o compadre“Os irmãos tiveram as unhas arrancadas, foram obrigados a beber urina e um deles, depois de pendurado numa árvore, teve o corpo lambuzado com mel para ser atacado por insetosO pior foi terem visto a mãe e as esposas torturadas”, conta Fausto Lieggio, de 97 anos, filho de um carcereiro na época do martírio dos Naves.

Os descendentes de Sebastião e Joaquim não comentam o casoPudera: o sofrimento dos irmãos foi além dos maus-tratos físicosO bebê de Sebastião morreu de desnutrição, segundo moradores, porque a mãe, depois de torturada, não teve como alimentá-lo corretamentePor semanas, Sebastião e Joaquim ficaram presos numa cela no primeiro andar do sobrado que está sendo reformado.

Lá funcionava a cadeiaO segundo pavimento abrigava o fórum, onde eles foram julgados duas vezesEm ambas foram inocentados por 6 a 1Aqui entra o erro do Judiciário, que aceitou recurso do Ministério Público, discordou das decisões dos jurados e condenou os réus
O Brasil seguia a Constituição de 1937, que não garantia a soberania do júri.

“Era outra épocaO crime de latrocínio era julgado pelo júriHoje, o tribunal pode até mudar a decisão dos jurados, numa revisão criminal, desde que ocorram fatos depois do julgamento”, esclarece o juiz Glauco Eduardo Soares, titular do 2º Tribunal do Júri de BH e ex-delegado em AraguariEle conhece a história não apenas por ter sido lotado na cidade: o drama dos Naves se tornou caso estudado nas faculdades de direito do país.

“O caso é um marco, tendo ‘virado’ livro e filme”, reforça o advogado Leonardo Marinho, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) e professor de processo penal na PUC Minas e na Universidade Federal de Minas GeraisO livro ao qual ele se refere, O caso dos irmãos Naves, foi escrito por João Alamy Filho, que defendeu Sebastião e Joaquim.

O bacharel conseguiu reduzir a pena dos irmãos de 25 anos para 16 anos Por bom comportamento, em 1946, a dupla deixou a prisão depois de oito anos e seis meses dentro de uma celaJoaquim, três anos depois, morreu “Foi para o céu carregando a culpa de um crime que não cometeu”, lamentou a historiadora Juscelia PeixotoEm 1952, a verdade foi esclarecida: Benedito apareceu numa fazenda próxima a Araguari Sebastião foi avisado e acionou a polícia.

Benedito, depois de localizado, jurou que não sabia do martírio enfrentado pelos irmãos Relatou que decidiu viajar pelo BrasilO empréstimo que ele havia conseguido jamais foi pagoJá a honra dos Naves foi resgatada.