No feriado, Ciarallo chegou ao Caraça e, como tem feito nos últimos três meses, instalou uma unidade cirúrgica no centro de visitantes com toda a estrutura para operar a loba e retirar o tumor, do tamanho de uma manga e pesando 800 gramasNa sala havia monitor multiparamétrico (para avaliar pressão, batimentos cardíacos, temperatura, nível de oxigênio etc.), medicamentos e outros materiais fundamentais para o sucesso do procedimentoNa tarde de ontem, descansando num cômodo perto da marcenaria, Beta rosnava e latia forte diante de qualquer aproximaçãoComo tem hábitos noturnos, tirava uma soneca, conforme destacou a coordenadora ambiental da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Santuário do Caraça, a bióloga Aline Abreu.
A captura teve momentos emocionantes e de muita paciência, disse o veterinário, que teve, na empreitada, a ajuda da mulher Roberta, cujo apelido é Beta“Foi ela quem, na verdade, capturou a loba, por isso a batizamos assim”, brinca CiaralloNo domingo, por volta das 17h, o casal e o funcionário do Caraça, Weberton Fernandes, se posicionaram na marcenaria, na esperança de que o bicho se aproximasse e entrasse num cômodo localizado bem em frenteO local, que sempre recebe a visita da alcateia, funcionou como armadilha e tinha uma corda comprida amarrada à porta entreaberta, pronta para ser puxada“Eram 20h, eu tinha ido jantar e Roberta ficou, no escuro, atenta aos movimentos
Piercing
Mesmo com Beta deitada, era possível ver os grampos cirúrgicos colocados no pescoço, um cuidado a mais, além dos pontos, para evitar que, ao se coçar, ela se machuque“Está com um piercing”, disse Ciarallo com bom humorSegundo ele, a loba recebeu antibiótico, anti-inflamatório e anti-hemorrágico“Fizemos a nossa parte, agora devemos deixar a natureza agirÉ bom soltar o animal logo, para evitar estresse dele ao ficar preso muito tempo”, disse Ciarallo, que já operou mais de 2 mil animais, muitos silvestres (onças, lobos-guarás e outros) na Clínica Veterniária São Francisco, em Conselheiro Lafaiete, na Região Central “Esse episódio foi importante para fortalecer a educação ambiental e mostrar a importância do cuidado com a fauna”, afirmou AlinePara o padre João Donizete Dombroski, do Caraça, a cirurgia tirou um peso da consciência dos religiosos que ali vivem“Estamos aliviados e felizes, pois o tumor estava sendo muito comentado
Ciarallo tomou conhecimento da situação do animal no início do ano, ao passar uns dias na pousada do santuário e presenciar o lobo machucado ao receber a carne das mãos dos padres, um costume de 30 anos“Vi a ferida vermelha no pescoço e me preocupeiFiquei sabendo, então, que o lobo estava desaparecido desde setembro de 2011 e reaparecido em janeiro Pensavam até que ele tivesse morrido, devido ao ferimentoMe ofereci, então, como voluntário, para cuidar e notei, com o tempo, que o tumor só aumentava.” Em outras ocasiões, ele teve a companhia da médica veterinária Carla Sassi, especialista em fauna silvestre
Exímio caçador
O lobo-guará é encontrado do Sul da Amazônia ao Uruguai, excetuando-se o litoral, picos de altitude e a mata atlânticaÉ canídeo por ser família do cachorro, do cachorro-do-mato, do coiote, do chacal, da raposa e dos lobos europeu, norte-americano e canadense – o Canis lupusE é o maior canídeo da América do Sul, porque a fêmea mede 90cm e o macho 95cm, aproximadamente – e da ponta do focinho até a ponta do rabo 1,45mAs patas são altas para facilitar o movimento nos campos, já que é um animal do cerrado
Os pesquisadores dizem que o Chrysocyon brachyurus não é animal das matas fechadas, mas espécie campestre, que anda em estradas e trilhas e onde há campos com baixa vegetaçãoNo Caraça, quem se dirigir ao Banho do Belchior, Pinheiros, Tanque Grande, Prainha, Cascatinha e Bocaina poderá ver com muita facilidade as pegadas do lobo-guaráSão quatro dedos, sendo que os dois do meio são um pouco mais juntos, almofada e garras.
Estima-se que a espécie viva 16 anos, pese em média 25 quilos e ande 30 quilômetros por noite nas suas caçadasTrata-se de um animal de hábitos noturnos, mais ágil ao entardecer e ao amanhecerDurante o dia, fica descansando sobre a relva, deitando-se cada dia em um lugar, jamais em tocasO Chrysocyon brachyurus é onívoro, portanto, come de tudo (pequenos animais e aves) “Ele continua caçando, independentemente da comida que nós oferecemos a eleEssa comida não o deixa dependente dos padresDos pequenos animais, ele come rato, gambá, coelho, coelho-do-mato, preá, cobra, sapo; das aves, jacu, saracura e outrasPor sinal, precisa dos pelos dos animais e das penas das aves para facilitar os movimentos peristálticos, da digestão”, informa a coordenadora Ambiental da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Santuário do Caraça, bióloga Aline Cristine Lopes de AbreuA área tem 11,2 mil hectaresO lobo-guará come também frutas, como a fruta-do-lobo ou lobeira, pêssego, maracujá, goiaba etcAlém disso, é atraído por cheiros fortes, como o de frutas e comida apodrecendo, motivo pelo qual costuma revirar as lixeiras.
Hábitos solitários
O lobo-guará tem hábitos solitários, não vive em alcateiaTambém não uiva – lateTerritorialista, demarca a área com urinaO acasalamento ocorre em abril e maioOs pesquisadores sabem disso, porque o tempo do acasalamento é quando o macho e a fêmea começam a andar juntosA gestação vai é de 62 a 65 diasOs filhotes, de um a três, nascem cinza-escuro e são colocados em buracos, às vezes de cupinzeiros, para ficar mais protegidosPor dois a três meses são alimentados pelos pais, que regurgitam o que ingeremDepois começam a fazer pequenas caminhadas com a fêmea, até que no quinto e sexto meses começam a aprender a caçarA tradição no Caraça começou em maio de 1982, quando algumas lixeiras começaram a aparecer reviradas e derrubadasO Irmão Thomaz falou ao padre Tobias, superior na época, que devia ser cachorro Padre Tobias achou muito difícil, porque cachorro não subiria a serra com tanta frequênciaComeçaram a observar e descobriram que responsável era Chrysocyon brachyurus“Aí começaram a colocar uma bandeja de carne em cada portão e elas amanheciam mexidasForam aproximando as bandejas da escada da igreja e por algum tempo os lobos foram alimentados lá embaixoAté que resolveram subir com a bandejaA bandeja subiu, o padre subiu, o lobo subiu!”, diz a bióloga Aline Abreu.