Em apenas quatro dias, o Estado de Minas encontrou 10 estabelecimentos que praticam “permutas” de alimentação por segurança com policiais militares, entre Belo Horizonte e Contagem, na Grande BHDesses, seis permitem que os funcionários públicos consumam irrestritamente os artigos que vendem, dois fornecem kits de lanches já preparados para os militares levarem e dois foram intimidados a conceder a “boca-livre” por medo de ficar sem segurançaÉ preciso desatacar, no entanto, que a conduta não é regra, pois muitos policiais foram vistos pagando pelo que comiam e bebiam, mas há indícios de que é disseminada em parte considerável da tropaNa cidade de São Paulo, o movimento é tão comum que os policiais receberam o apelido pejorativo de “coxinhas”, numa alusão aos salgados que consomem de graça
Na padaria do Bairro Ouro Preto em que a atendente foi intimidada e passou a permitir que os policiais saíssem com pães de queijo, salgadinhos, cafés e refrescos sem desembolsar nada por isso, a equipe do EM presenciou a chegada dos militares da região, responsáveis pelo patrulhamento do bairroPararam a viatura sobre o passeio e entraramCumprimentaram a funcionária do caixa, sorriram para as mulheres que abasteciam as prateleiras de pães e seguiram para o freezerSem qualquer cerimônia, pegaram refrescos e salgadinhosAo lado do caixa, trocaram duas palavras, um ou dois sorrisos com a responsável por registrar as comprasA mulher respondeu com um sorriso amarelo e eles se foram“Tem vez que (os policiais) vêm e pagamOutros (militares) saem sem pagar, mesmoA gente fica aqui assim, sem poder fazer nada”, diz a mulherQuase murmurando, ela conta que o patrão não permite fornecer nada aos policiais, mas confessa que fica “sem graça” de impedir a atitude.
A frequência de lanches gratuitos de policiais militares numa pequena padaria e armazém da Avenida Américo Vespúcio, no Bairro Ermelinda, Região Noroeste de BH, também começou com a pressão dos PMs que fazem a segurança das imediações“Para não levar muito prejuízo, a dona (do estabelecimento) resolveu falar para os soldados anotarem e pagarem por mêsMas é só de vez em quando que anotamMesmo assim, nunca pagam o que devemJá desistimos”, diz a atendenteMinutos depois de a funcionária falar sobre a situação, uma dupla de policiais deixou a viatura sobre o passeio e entrou na padariaOs dois sentaram-se, comeram salgados e beberam refrigerantesFicaram mais de 15 minutos degustando o lanche e conversando sobre a prisão de um menorDe repente se levantaram, olharam em volta, abriram sorrisos para as funcionárias e saíram sem anotar nada“Esses aí (os dois militares) vêm aqui todos os dias e não pagam nada”, conta a balconista.
Em outra padaria, na Avenida Contagem, Bairro Santa Inês, Região Leste de BH, policiais têm total acesso aos produtos expostosOs militares da patrulha do bairro posicionam as viaturas sobre o passeio, bem em frente ao estabelecimento, e deixam o veículo com as luzes girando“Nossa! Que sede! Me dá uma água.” Quem fala é um cabo da PM, dirigindo-se à garçonete no balcãoEla volta com um copo cheio de águaO militar bebe e puxa um assunto corriqueiro, falando sobre os vizinhosAs funcionárias da loja entram na conversa e, enquanto isso, ele escolhe os salgadinhos de que mais gosta e pede uma lata de refrigeranteO papo prosaico segue em meio ao movimento dos clientes que entram e compram pães e mantimentos
Aparentando estar satisfeito, o militar caminha para o caixa, mas não é para pagarAntes mesmo que ele diga qualquer coisa, a funcionária que opera a máquina registradora se abaixa e pega uma embalagem com vários maços de cigarros abertosEla sabe que, depois de comer, o policial gosta de fumar na porta da lojaA venda desse produto a granel é proibida por lei, mas a mulher não se preocupa com issoAntes que o policial peça, ela entrega a caixa para que o homem fardado escolhaIsso garante pelo menos mais 10 minutos de presença da polícia em frente ao estabelecimento, o tempo que o militar leva para consumir o cigarro e ir embora“Aqui eles podem pegar o que quiseremPara mim é bom, porque a gente fica mais seguroAntes tinha muitos assaltosForam dois roubos só no fim do ano”, diz a funcionária da registradora, revelando um outro lado da boca-livre da segurança: a dos comerciantes que estimulam a troca de produtos por uma deferência especial do policiamento, que deveria ser coletivo.
O que diz a lei
As atitudes de policiais que se beneficiam de alimentação e agrados de comerciantes para favorecer a segurança num ou noutro estabelecimento ferem ao Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar de Minas Gerais, contido na Lei 14.310 de 2002 e ao Código Penal BrasileiroPoliciais que constrangem comerciantes para obter vantagem incorrem em crime de concussão, definido pelo código penal como ato de exigir para si ou para outrem, dinheiro ou vantagem em razão da função, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevidaA pena é de reclusão, e vai de dois a oito anosHá ainda a pena de multa, que é cumulativa com a de reclusãoOs policiais que se corrompem para receber favores incorrem em crime de corrupção passiva, ou “solicitar ou receber, para si ou para outros, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”Os comerciantes que oferecem os benefícios incorrem em corrupção ativa, que é “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”Os dois crimes são punidos com pena de reclusão, de 2 a 12 anos, e multa