A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES) acompanha há 10 anos a escalada das ações judiciais para obtenção de medicamentos não fornecidos pelo Sistema Único de Saúde em Minas
Em São Paulo, onde em 2011 foram gastos R$ 700 milhões com demandas judiciais no setor, o Ministério da Saúde já identificou que laboratórios contratavam pacientes cobaia para participar de pesquisas para determinados medicamentos, prometendo a eles a medicação até o fim dos testes“Notamos que eram as mesmas pessoas que depois ingressavam na Justiça para conseguir esses remédios, como forma de forçar o ingresso dos medicamentos na lista do SUS, beneficiando determinado laboratório”, comenta o consultor jurídico do ministério Jean Keiji Uema.
Em 2003, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, com ajuda de um profissional da área de segurança pública e da Procuradoria-Geral do Estado, criou um núcleo de inteligência para investigar as ações judiciais em uma cidade do interior paulistaEm audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, relatório da Polícia Civil paulista, ao qual o Estado de Minas teve acesso, mostrou que depois de análise criteriosa foi descoberta a chamada “fidelização de advogados e medicamentos”: nas prescrições médicas, predominava o mesmo profissional, indicando a mesma droga, muitas vezes citando a marca do produto que deveria ser dispensado ao doente
Na maioria das vezes, esses especialistas eram jovens, em início de carreira, assim como os médicos que prescreviam as substânciasTodas as medicações eram de custo alto e prescritas como a última esperança para portadores de psoríase, uma doença autoimune inflamatória da peleAinda de acordo com o relatório, havia na história falsidade e outros delitos, bem como a existência de uma organização criminosa e articuladaFoi descoberta uma engrenagem que incluía uma ONG responsável por captar pacientes, médicos que prescreviam os medicamentos e advogados que entravam com as açõesO maior prejuízo, de acordo com a investigação, foi causado aos pacientes, pois muitos não eram portadores da doençaOs que tinham a patologia não apresentavam grau de gravidade que justificasse o uso do remédio, considerado de alto risco, por apresentar efeitos colaterais severos e que, inclusive, foi suspenso pela agência europeia de medicamentos.
“É uma relação promíscua e constante”, alerta o presidente da Comissão de Direito e Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil – seção Minas Gerais, Tadahirot TsubouchiEle diz que há, sim, profissionais sendo induzidos por laboratórios, principalmente quando o caso envolve remédios caros e novos“Há empresas que até chegam a fazer referência em sites para determinado advogadoÉ uma questão de éticaA OAB proíbe esse tipo de prática”, avisa.
Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou ser contra qualquer tipo de interação entre advogados, médicos e a indústria farmacêutica no sentido de orientar prescrições e tratamentos com o intuito de obter lucros
Abuso tira verba de reais necessitados
Os pedidos de medicamentos que visam a favorecer laboratórios ou parcerias questionáveis entre médicos e advogados acabam roubando recursos de quem realmente precisa de produtos não oferecidos pelo SUSPacientes cujo organismo cria resistência aos remédios e que precisam de constante inovação das drogas sofrem com a morosidade da Justiça para garantir o que lhes salva a vidaÉ o caso de portadores da doença conhecida como mieloma múltiploHá sete anos, Angela Maria de Castro Azevedo, de 58, está em tratamento para a enfermidade e diz já ter usado todas as medicações existentes no país“Quando um remédio não dá mais resultado, é necessária outra opção”, dizAngela foi a primeira paciente em Minas a conseguir, gratuitamente, o medicamento Lenalidomida, que custa, em média, R$ 20 mil para um mês de tratamentoA medicação é aprovada em 80 países, mas ainda não tem a chancela da Anvisa“É preciso importar, o que gera atrasoTodo mês tenho que comprovar a necessidade, com declaração médicaÉ uma luta cansativaVer que há abusos é ruim, porque acaba prejudicando quem realmente precisa.”
Um desses procedimentos abusivos, na avaliação da assessora chefe da Assessoria Técnica em Judicialização da Secretaria de Estado da Saúde, Vânia Rabelo, é o caso em que os advogados entraram com mandado de segurança pedindo uma dieta especial para uma criança com alergia a leite“A lata de leite especial requisitada custava R$ 400, sendo que poderia ser substituída por uma de R$ 90Mandamos o caso para o Ministério Público e o advogado confessou que trabalhava para a tal empresa fabricante”, revelaE há casos mais curiosos: “Por determinação da Justiça, há seis meses entregamos a uma paciente uma dieta de coxinhas e empadinhas especiais, por recomendação de uma nutricionista”Segundo ela, há casos de pacientes para os quais as medicações custam R$ 1 milhão mensal, sem eficácia comprovada por estudos científicos.
Indústria defende parceria e vigilância
Para o presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Antônio Britto, não se pode colocar nos laboratórios a culpa de possíveis irregularidades“Temos no Brasil 340 mil médicos, 25 mil medicamentos e 195 milhões de pacientesSe existem 200 mil processos na Justiça, dizer que o fenômeno ocorre por causa de deslizes é não querer encarar a realidade”, dizEle afirma que, a partir do momento em que a Constituição diz que a saúde é gratuita e o governo não oferece medicamentos mais complexos, as famílias vão em busca de seus direitos.
“Nenhum medicamento pode ser vendido sem que tenha o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)É claro que a indústria quer os medicamentos na lista do SUS, mas isso é um direito do cidadão”, defende, dizendo desconhecer qualquer influência de má-fé dos laboratórios no fenômeno da judicialização“Temos uma parceria com o Conselho Federal de Medicina e qualquer denúncia que vá contra o código de ética médica é averiguada.”
“Seríamos levianos se disséssemos que, por trás da grande demanda judicial, há, fundamentalmente, posturas inadequadasMas de fato, em alguns casos, há sim uma concentração de advogados e médicos no mesmo processo”, afirma o consultor jurídico do Ministério da Saúde Jean Keiji Uema“Nossa intenção é trabalhar a conscientização do JudiciárioO SUS dispõe de políticas e procedimentos estabelecidos, que não estão sendo observados nas ações”, acusa, referindo-se a liminares para produtos não aprovados pela Anvisa.
O fato é que, diante de possíveis esquemas irregulares, órgãos públicos tentam deixar mais transparente o processoA estratégia vai desde municiar o Judiciário com conhecimento técnico até uma exigência mais detalhada dos pedidos de medicamentosAssim, pacientes que necessitam com urgência das medicações de alto custo têm a burocracia como novo adversário.
Presidente da ONG SOS Vida, o advogado Antônio Carlos Teodoro, chama atenção para os entraves enfrentados pelos pacientes “O poder Judiciário tem que estar mais preparadoEm Belo Horizonte, criaram uma central que analisa se o medicamento solicitado pode ser substituído por outro existente no SUSIsso não pode ocorrerSe o paciente tem a recomendação médica, ela é soberanaSe o médico receitou, é porque conhece do assuntoO cidadão está sendo prejudicadoSe há indícios de irregularidade, é preciso que haja uma investigação séria”, pontua.
Saiba mais
GARANTIA NA LEI
A Constituição Federal, nos artigos 6º e 196º, prevê o acesso universal às ações e serviços de saúde, como direito social e dever do EstadoA Lei 8.080/90, que instituiu o SUS, estabelece, em seu artigo 6º, que “é atribuição do Sistema Único de Saúde a execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”Assim, se o poder público não fornece o medicamento de que os pacientes precisam, mas pelo qual não podem pagar, recorrer à Justiça é o caminho natural e legítimoFoi o que fizeram, primeiramente, grupos de portadores de HIV/Aids, seguidos por outras associações de usuários de remédios de custo elevadoPara atender à procura por esses produtos sem a necessidade de o paciente recorrer à Justiça foi criado em 1993 o Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, que ganhou impulso em 1998, com a Política Nacional de MedicamentosEla incluiu a garantia de acesso da população aos produtos de alto custo para doenças de caráter individual