Jornal Estado de Minas

Após 45 anos, mulher pode ter encontrado filha separada dela por causa da hanseníase

Mãe afastada dos filhos quando era interna de colônia para hansenianos em Bambuí acredita ter localizado sua caçula, dada como morta. As duas farão exames em São Paulo.

Sandra Kiefer
Maria Aparecida da Silva - 65 anos, dona de casa - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press


Bambuí – A dona de casa Maria Aparecida da Silva aparenta ter mais de 65 anosTem o rosto envelhecido pelo sofrimentoQuando nova, chamava a atenção pelos cabelos louros e lisos, os olhos esverdeados e o corpo esbeltoA beleza da mãe, porém, tornou-se uma maldição na famíliaQuatro dos cinco filhos de Aparecida sumiram misteriosamente, ainda bebês, durante a década de 1960, dentro da colônia para doentes de hanseníase São Francisco de Assis, em Bambuí, na Região Centro-Oeste de Minas GeraisRenata e Wilson tinham pele cor de jambo e olhos de esmeralda, Vânia e Jeram louras de nascençaCom a mãe, restou apenas Reinaldo, o único de pele mais morena e olhos castanhos.

Desde que entrou na colônia, há quase meio século, Aparecida nunca mais saiuVai sair agora, depois de descobrir uma pista sobre o paradeiro da filha mais nova, J., que até então era dada como mortaHoje, Aparecida e o único filho ‘sobrevivente’ enfrentam 598 quilômetros de estrada de Bambuí a São Paulo em busca de um rastro de esperança“Eu era interna da colônia
Um dia, depois de muito custo, recebi autorização para ver meus filhos na pupileira (orfanato), em Belo HorizonteDisseram que o mais velho tinha falecido de icterícia, que a Renata não tinha resistido a uma transfusão de sangue e que Jtinha morrido, mas não disseram de quêNão peguei certidão de óbito, nem nadaSó queria ir embora dali”, diz, com os olhos vermelhos pela emoção.

Pavilhões desativados do hospital para tratar hanseníase em Bambuí viraram ruínas - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press

Aparecida tinha 18 anos quando contraiu hanseníase, a lepraTrabalhava na roça de algodão com a mãe, em Claraval (SP)Estava ainda de resguardo da Renata, a mais velha, quando começou a não sentir as mãosAlguém a denunciou para a saúde pública, dando início à trajetória de angústia e dúvidasHoje, o sofrimento de Aparecida poderá ser amainadoMãe e a possível filha concordaram em se submeter a um teste de DNA em SP
“Se for mesmo minha filha, não sei como ela vai me receberEsquecer, eu nunca me esqueci delaNão sei se ela sabe que a gente não podia ficar com as crianças, só podia ver o bebê na hora em que nasciaNão acho que faziam isso por maldade; eles tinham medo de espalhar a doença”, acredita.

A técnica de enfermagem Jmora em uma cidade do interior paulista e sempre desconfiou que era adotada, mas nunca soube a história verdadeiraLoura, foi chamada de galega pelos irmãos e primos, predominantemente descendentes de índiosEla não tem certidão de nascimento e nenhuma foto da infância“Quero que seja verdade, porque só tenho a somarVou ter duas mães!”, acreditaEla e o possível irmão Reinaldo, que têm a mesma profissão, confiam na indicação de um amigo da famíliaRecentemente, essa pessoa ajudou a encontrar as certidões de nascimento e de ‘óbito’ de Jem um cartório de BH, apesar de terem trocados sobrenomes, datas e local de origem, como se costumava fazer nas adoções irregulares dos filhos da hanseníase.

Exame

Amanhã, Aparecida e Jseguem juntas para um laboratório na capital paulistaO resultado do exame leva até um mês para sairTempo curto diante dos 45 anos de afastamento compulsório entre as duas“Consegui ver a Jcom 15 dias de nascidaEra lourinhaSou espírita e dei a ela um nome com significadoComo não podia amamentar, passei a usar colar de mamona no pescoço para secar o leiteToda vez que pensava nela, o leite descia”, lembra a mãe, emocionada.

Quando entrou, em 1964, para o isolamento, de onde nunca mais saiu, Aparecida era uma das jovens mais belas da colôniaTinha o cabelo louro, em estilo Chanel, mesmo corte de cabelo usado hoje pela provável filha caçulaEla logo engravidou de Gervásio Manoel da Silveira, com quem se casouEm 1965, nasceu Wilson; depois veio Reinaldo, em 1966; seguido de Vânia, em 1968, e, por fim, J., em 1967“Quando eu me internei, Renata ficou um tempo na roça com minha mãe, mas ela não tinha condições financeiras de criá-la e mandou entregar a criança para mim na colôniaMinha filha não passou nem na cancelaDe lá, foi levada direto para o porão da administração”, dizAté hoje, apesar de não existir mais colônia, nem isolamento, está mantida a cancela com porteiro na Comunidade São Francisco de Assis.

A mais velha, Renata, é filha do primeiro noivo de Aparecida, que ficou do lado de fora da colôniaSegundo a certidão de nascimento original, que pode ter sido modificada depois da adoção, Renata veio ao mundo em 16 de outubro de 1962Hoje, portanto, estaria com 50 anosMeio século de dolorosa separaçãoHá indícios de que ela teria sido adotada por um casal de italianos“Quando fui vê-la, ela estava com 2 anosUsava um vestidinho azul e, quando me viu, começou a chamar ‘nanãe’, ‘nanãe’, porque não sabia falar direito”, conta, escondendo a cabeça entre as mãos, que não apresentam sequelas da hanseníase.

Doença tem cura desde 1940

Mais antiga doença da humanidade, a hanseníase é caracterizada pela presença de feridas no corpo do enfermo, que podem provocar deformidades físicas na fase agudaÉ transmitida pela respiração, através do contato íntimo e prolongado com o portador do bacilo de HansenA doença já tem cura desde 1940No Brasil, o tratamento com poliquimioterapia (PQT) é simples e oferecido gratuitamente nos postos de saúde, segundo o Ministério da SaúdeA primeira dose de medicamento mata 90% dos bacilos e a doença já deixa de ser transmitidaO tratamento não pode ser interrompido e dura em média seis meses

Entrevista

"Peço a Deus que ela seja minha mãe"

J- auxiliar de enfermagem que pode ser filha de Maria Aparecida Silva

Dependendo do resultado do teste de DNA, a auxiliar de enfermagem Jpoderá descobrir que seu nome no registro de nascimento não começa com outra letra do alfabeto, que seu sotaque paulista não é de origem, que tem outra mãe e que sua filha terá mais uma avó e quatro tiosAté a data do seu aniversário pode estar errada, pois era costume trocar os dias para apagar qualquer vestígio de que a criança tivesse pertencido a uma colônia de hansenianosEla disse ao EM torcer para que o exame dê positivo“Se der negativo, vão sair dois lados tristes desta história”, diz.

Você sempre soube que era adotada?

Sempre ouvi dizer que era adotadaMeus irmãos são moreninhos, descendentes de índio, e me chamam de galegaQuando tinha sete anos perguntei para a minha mãe e ela disse que havia me achado em uma caixa de sapatos, mas depois desmentiuNão tenho fotos da infância e no meu registro eu nasci no mesmo ano que um dos irmãosPerguntei para a minha mãe e ela alegou que havia sido erro do cartórioHoje já nem sei mais meu nome correto nem a idade que eu tenho.

Você sente que o teste de DNA vai dar positivo?

Pode ser que sim, pode ser que nãoMas se der negativo, vão sair dois lados tristes desta históriaNo fundo, a gente sempre quer saber de onde veioSe meus pais adotivos não contaram é porque não conseguiramDevem ter ficado com medo de que eu abandonasse tudoTenho uma colega que ficou revoltada ao descobrir a adoção.

Existe esse risco para você?

Imagine! Para mim não tem divisão, vai ser uma somaVou passar a ter duas mães, um monte de irmãos, minha filha vai ter várias avós… Do fundo do meu coração, estou pedindo a Deus que ela seja a minha mãePreciso acabar com essa dúvida.

Reinaldo foi o único filho não adotado - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press

Histórias de separações

O biotipo de Reinaldo aparentemente não interessava nas adoções irregulares que ocorriam aos montes nas colônias da época, criadas a partir da década de 1920 com o objetivo de isolar doentes de hanseníase para tratamento compulsórioAo dar entrada no isolamento, levados muitas vezes à força, mães e pais eram obrigados a abandonar os filhos já na cancela de entrada dos hospitais-colôniaCalcula-se que entre 25 mil e 40 mil bebês e crianças foram separados de seus pais, como forma de evitar o contágioCresceram internados em 101 creches (preventórios) e orfanatos (educandários) no Brasil.

Nem todos os filhos separados de seus pais cresceram em internatosMuitos morreram no caminho ou foram dados como mortos, quando eram encaminhados para adoção a famílias de posses e sobrenomes importantes no Brasil e no exterior“Fato é que existia preconceitoSó ocorriam falecimentos de crianças brancas no sistema”, ironiza Reinaldo, de 48 anosCasado e com uma filha, ele continua morando perto da mãe e complementa a renda da enfermagem trabalhando como taxista.

Segundo ele, Jse parece muito com Vânia, a irmã do meioDe cabelos louros e corte Chanel, Vânia havia sido dada em adoção a um casal de médicos de Carlos ChagasRecentemente, foi localizada com a ajuda de um amigo da família, o mesmo que tenta agora encontrar JA diferença é que a entrega de Vânia para adoção, na época, teria ocorrido com o consentimento do paiGervásio já morreuVânia tem dificuldades em aceitar a nova realidadeE Aparecida tem medo de voltar a sofrer“Tenho medo de eles me rejeitarem”, desabafa.