Há um ano o empresário Eduardo Bianchini, de 39 anos, via ameaçado muito mais que o apartamento que comprou no Bairro Buritis, na Região Oeste de Belo Horizonte, com as economias de uma vida dura de trabalho. No Edifício Vale dos Buritis, com a esposa, ele planejou cada detalhe do sonho: trocou o piso, instalou bancadas de madeira de demolição e decorou o quarto do filho recém-chegado, que só morou alguns meses ali. A janela do quarto, de frente para uma área de mata, trazia conforto raro para quem vive na cidade grande, com ar puro e ambiente ventilado. Mas a família de Eduardo foi obrigada a deixar o imóvel às pressas – com outras cinco –, dois meses antes de o prédio vir abaixo. Era só o primeiro capítulo de uma novela que continua se arrastando sem data para terminar.
Na próxima segunda-feira, quando se completa um ano exato da interdição do imóvel, os donos dos apartamentos e vizinhos farão uma manifestação nas ruínas do edifício, protestando pela demora para o desfecho do caso. A ordem de desocupação do Vale dos Buritis marcou o início do calvário desses moradores, que viveram de favor, com móveis amontoados na casa de parentes, até que a construtora Estrutura Engenharia passasse a pagar um aluguel de R$ 1.500, por determinação judicial. Os contratos serão renovados em novembro, e provavelmente reajustados, mas a Justiça ainda não decidiu sobre o direito dos proprietários.
“Era a nossa casa própria, conquistada com o suor do nosso trabalho. Não estou querendo punição nem pedindo favor a ninguém. Quero só meu direito de ressarcimento, para poder começar de novo”, desabafa Eduardo Bianchini, que depois de deixar o prédio do Buritis alugou um imóvel no Bairro Gutierrez. Ele lembra a primeira audiência do processo. “Ouvi do juiz que ele era tão leigo quanto cada um de nós e que esperaria o laudo técnico para dar uma resposta com celeridade. Mas o perito já entregou o laudo em abril, atestando o problema de fundação. Se isso é agilidade para o ressarcimento de um cidadão honesto, que não tem imóveis por aí para escolher onde morar, imagine o que seria demorado”, critica.
A supervisora de call center Rita Piumbini, de 52, diz que falta sensibilidade à Justiça, que já acompanhava a luta dos moradores dois anos e meio antes do desabamento. Rita e os dois filhos moram em um apartamento na rua abaixo, mas ela não se sente em casa. “Um apartamento alugado assim não tem seu toque, sua cara. Tinha escolhido os armários, os lustres, pintado meu quarto. Deixei de viajar e investi para ser feliz ali”, conta, referindo-se ao prédio que desabou.
Expectativa
A advogada Karen Myrna Teixeira, que representa os proprietários de imóveis do Vale dos Buritis, diz que falta só o juiz marcar a audiência. Mas o magistrado está prestando serviços ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e não há previsão de retorno. Segundo ela, o laudo do perito judicial foi apresentado em abril e o magistrado teve 30 dias para analisá-lo. Depois disso, a construtora solicitou que o perito fizesse avaliação dos imóveis. O profissional devolveu o processo anteontem. A preocupação dela é com a renovação dos contratos de locação, entre novembro e dezembro, e com o possível reajuste.
A bancária aposentada Augusta Maron, de 53 anos, que comprou há seis anos o apartamento 301 do Edifício Vale dos Buritis, está receosa com o fim dos contratos de aluguel e não quer passar por mais transtornos. Ao deixar o prédio, ela ficou hospedada na casa de uma amiga, e o marido, com os móveis, passou um mês na casa da mãe, até que a construtora cumprisse a ordem de pagar os aluguéis. “Usamos nossas reservas, empréstimos, financiamento e tudo mais o que a gente pôde para comprar o apartamento. Senti alívio ao conseguir retirar minhas coisas, mas claro que fica um sentimento grande de perda. Tenho esperanças de que a gente possa recuperar nosso dinheiro.”
Em situação pior estão as três famílias do prédio vizinho, o Art de Vivre, construído pela Podium Construtora e demolido pela prefeitura, porque também sofreu abalos. Individualmente, os moradores entraram na Justiça em fevereiro e ganharam o direito a receber aluguel, que ainda não foi pago pela empresa. “Quem sabe quando eu morrer, meu filho possa receber alguma coisa. Já não tenho esperanças, porque, quando a Justiça decidir, a empresa não existe mais. Sem contar que a prefeitura está fazendo obras e vai mandar a conta para firma”, lamenta o engenheiro Epaminondas Souza Lage, de 53 anos, que deu de entrada um apartamento quitado e ainda pagava as prestações do imóvel demolido. “Só nos resta trabalhar para começar tudo de novo.”
Diretor da Estrutura Engenharia, José Teixeira se sustenta no argumento de que não havia drenagem na rua para defender a tese de que a empresa não é responsável pela situação. “Peritos disseram que a empresa do prédio ao lado fez uma terraplanagem que não poderia ter sido feita, nos fundos do terreno. A rua também não tinha drenagem, como acontece em vários bairros da cidade, mas quando eu construí, não havia problema. Quero que a Justiça decida logo, porque sei que tenho razão e aí vou parar de pagar os R$ 7.500 que pago de aluguel todo mês”, afirma, garantindo que o perito judicial ainda não terminou as análises. A Podium Engenharia foi procurada, mas não se manifestou sobre a situação.
Bairro refém da rua interditada
A padaria do comerciante Luiz Eustáquio Moreira, de 54 anos, fica na Avenida Protásio de Oliveira Penna, no Buritis, e desde o fechamento da Rua Laura Soares Carneiro, que é paralela, os prejuízos só aumentam. A dona de casa Cristina Castro, de 49, que mora na Rua José Hermetério Andrade, deixou de ser cliente dele para não ter de dar a volta pela Avenida Mário Werneck. “Perdi mais de 100 clientes fixos. Fecharam a Protásio de Oliveira por quatro meses na época, diante dos riscos de desabamento dos prédios na rua de cima, e agora fecharam uma pista por causa das obras. As vendas caíram 30%”, disse o comerciante. O prejuízo é tanto, acrescentou, que foi preciso dispensar um dos funcionários.
Por causa do desvio, segundo Cristina Castro, o motorista do escolar que pega sua filha mudou o roteiro. “Passou a cobrar R$ 10 a mais por conta do percurso que aumentou, e também pelo tempo perdido”, disse a dona de casa, reclamando que o fluxo de carros aumentou na José Hermetério Andrade, onde mora. “É a única rua de acesso ao colégio agora.”
Transtorno também para os antigos moradores do prédio que desabou. Eles tinham que buscar suas correspondências na sede dos Correios da Avenida Amazonas, mas foram avisados de que agora todas as correspondências serão devolvidas aos remetentes. A última correspondência que o empresário Eduardo Bianchini conseguiu apanhar foi a cobrança do IPTU de novembro do ano passado, quando o imóvel já havia sido interditado pela Defesa Civil. “Paguei o IPTU até quando morava no prédio. Depois, parei. Entrei com pedido de remissão do imposto na prefeitura, no fim de janeiro deste ano. Disseram que a resposta sairia em 60 dias. Mas, até hoje nada”, reclamou.
NOVELA SEM FIM
22/10/2011
O Condomínio do Edifício Vale dos Buritis, na Rua Laura Soares Carneiro, no Bairro Buritis, é interditado pela Defesa Civil municipal no fim da tarde. São seis apartamentos em três andares. Já havia trincas e rachaduras nos cômodos e no muro do 1º andar e os moradores temiam o desmoronamento com o início do período chuvoso.
23/10
Cinco famílias são notificadas para que deixem o Vale dos Buritis. Dois prédios vizinhos também são interditados: o Art de Vivre, onde quatro famílias moravam, e outro em fase de construção.
24/10
A Defesa Civil avalia que os prédios são impróprios para habitação. A Justiça determina que construtora Estrutura Engenharia inicie as obras de revitalização do Vale dos Buritis. Representantes do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-MG) visitam o local. A construtora afirma que edifício nunca teve problemas estruturais e que reformas foram feitas quando surgiram as primeiras rachaduras.
25/10
Os três prédios são lacrados e moradores não podem nem retirar objetos pessoais. Em nova vistoria, a Defesa Civil constata o agravamento da situação. Trincas e rachaduras são descobertas nos pilares do edifício Vale dos Buritis. O risco de desabamento é considerado iminente.
26/10
A Defesa Civil emite alerta de pancadas de chuva na capital e as encostas do fundo dos prédios são cobertas por lonas, na tentativa de evitar deslizamentos de terra. A construtora desiste de recorrer da decisão judicial e informa que vai enviar equipe ao local para avaliar a necessidade de reparos.
27/10
Moradores denunciam saques nos apartamentos. A Defesa Civil amplia a área interditada para passagem de pedestres e veículos. A Estrutura Engenharia solicita autorização para fazer obras de estabilização. O coordenador da Defesa Civil, coronel Alexandre Lucas, visita o prédio depois da madrugada de temporais na capital, e atesta que o Vale dos Buritis estaria afastado da rua mais de um palmo.
28/10
O risco de deslizamento do barranco atrás dos edifícios aumenta e, por isso, uma casa e um prédio que ficam na Avenida Protásio de Oliveira Penna também são evacuados. Ao todo, 14 famílias saíram de suas residências. Equipamentos conhecidos como inclinômetros são instalados no interior do edifício para acompanhar o grau de movimentação.
29/10
As construtoras responsáveis pelos prédios – Estrutura e Podium – contratam empresas para avaliar movimentação do terreno e medir a inclinação dos edifícios. A Defesa Civil faz nova inspeção e os moradores contratam vigilância privada para coibir novas invasões.
30/10
Advogada dos moradores anuncia que vai entrar com petição na Justiça para que as construtoras assumam os custos de hotéis para os desalojados.
31/10
A Justiça decide que construtoras arquem com os custos de aluguéis para os moradores e estipula valor de até R$ 1,5 mil para cada um.
1º/11
Antes de ser notificada, a construtora responsável pelo prédio Vale dos Buritis informa que vai recorrer para não pagar os aluguéis, alegando não ser responsável pelos danos.
4/11
A construtura recebe intimação da Justiça e autoriza os moradores a alugarem apartamentos, mesmo recorrendo da decisão.
6/11
Moradores reclamam de valor do aluguel estipulado pela Justiça e consideram R$ 1,5 mil pouco para conseguir outro imóvel. Também questionam a burocracia e exigências da locação.
8/11
Engenheiro contratado pelas construtoras emite parecer técnico e informa que prédios vão precisar de escoramento para que qualquer intervenção possa ser feita, inclusive as perícias e a retirada dos bens dos moradores.
10/11
Começa o escoramento nos edifícios interditados na Rua Laura Soares Carneiro. As toras de madeira são instaladas em pontos específicos da garagem, hall de entrada e portaria.
12/11
Depois de 21 dias fora de casa, os moradores do primeiro andar do Vale dos Buritis começam a retirar os pertences mais leves, como colchões, utensílios, roupas e documentos. O escoramento acontece por andar e, desta forma, os moradores são chamados para fazer um inventário e buscar suas coisas.
17/11
Começa a mudança de móveis pesados, depois da conclusão de todo o escoramento do prédio.
19/11
Rachaduras aparecem no quarto prédio e estudo do solo mostra pontos ocos de dois metros nas proximidades dos prédios interditados.
29/12
A chuva agrava a situação e pedaços da fachada do Vale dos Buritis se soltam. Bombeiros e técnicos da Defesa Civil recomendam a demolição imediata para evitar riscos.
02/01/2012
Impasse entre moradores e construtora sobre demolição fica nas mãos da Justiça, que está em recesso. Os proprietários não querem assumir a decisão de demolir o prédio, sob o argumento de que, no futuro, a construtora poderia alegar falta de provas que comprovassem sua responsabilidade.
06/01
Moradores de mais um prédio no Rua Laura Soares Carneiro são orientados a deixar os apartamentos, em princípio apenas no fim de semana, por causa da previsão de chuva forte. A garagem poderia ser afetada em eventual desmoronamento, e a Defesa Civil emite ordem de desocupação do edifício Condomínio Brisas do Vale. A fachada do Vale dos Buritis começa a cair.
07/01
Vizinhos relatam noite de deslizamento de terra nos fundos dos prédios e dizem que o barulho de paredes trincando foi intenso. Com receio de uma tragédia, eles cobram uma definição rápida. No quarto prédio, há suspeita é de que os moradores estejam em casa.
08/01
Outra parte da fachada do prédio condenado no Buritis desaba com chuva. Os proprietários e a construtora de edifício que ameaça desabar não chegam a um acordo sobre demolição. No Condomínio Brisas do Vale, os moradores permanecem em casa, apesar da notificação.
09/01
Defesa Civil faz vistoria com outras entidades. Em conjunto, emitem laudo sobre a necessidade de demolir o prédio. As escoras que sustentam a construção estão envergadas. À tarde, a Justiça manda prefeitura demolir o primeiro edifício interditado no Buritis. Durante todo o dia, partes do prédio desabam.
10/01
O prédio Vale dos Buritis desmorona às 7h20. Há muita poeira e os destroços deslizam pela encosta, em direção à Avenida Protásio de Oliveira Penna. Não há vítimas. A construtora declara em nota que as causas das trincas que atingiram o edifício e outros imóveis próximos “são completamente estranhas à atuação da empresa e ao processo construtivo do prédio”. Prevalece a recomendação da Defesa Civil de demolir o segundo prédio ao lado do que desabou.
12/01
A prefeitura inicia a demolição do prédio vizinho, o Art de Vivre, construído pela Podium. Três famílias viviam no edifício recém construído. A Justiça autorizou a demolição pela empresa, mas não conseguiu citá-la no processo e, por isso, a prefeitura se adiantou e conseguiu a autorização para executar o trabalho.