“Botou o rim?”, perguntou Cristiano Vieira Gusmão, apalpando o próprio abdômen“BotouTá uma beleza! Você não vai mais precisar fazer diálise”, explicou o médico José de Resende Barros Neto, coordenador do Serviço de Nefrologia do Hospital Felício RochoSonolento e fraco por causa dos sedativos, o paciente, de 23 anos, soltou um leve sorriso Estava deitado em uma maca no Centro de Tratamento Intensivo (CTI), no início da tarde de ontemAlgumas horas antes, ele foi o primeiro portador de síndrome de Down a receber um órgão em Minas Gerais nos últimos 20 anos, pelo menos nas contas do MG Transplantes, central responsável por coordenar a política de transplantes de órgãos e tecidos no estado.
O novo rim de Cristiano foi retirado de sua mãe, Noeme Vieira Rocha Gusmão, de 57 anosDesde junho, quando os médicos descobriram que o rapaz precisaria de um transplante para sanar sua insuficiência renal – os dois órgãos atuavam com menos de 10% do funcionamento normal –, mãe e filho se apressavam para realizar todos os exames prévios à cirurgia, como relatou o Estado de Minas em matéria publicada no dia 7 deste mêsNa manhã de ontem, tudo correu conforme o previsto, e os recém-operados passam bemNo entanto, os médicos ressaltam que Cristiano não foi curado: apenas começou um novo tratamento.
Cirurgia
No final da tarde de segunda-feira, Noeme e seu filho foram internados no quarto 432 da enfermaria do Felício Rocho e passaram a tomar medicamentos para evitar que o corpo do receptor rejeitasse o órgão que sua mãe lhe doariaCristiano estava tranquilo, mas queria saber qual seria o tamanho do corte que fariam em sua barriga“Vai sair muito sangue? Vou sentir dor?”, perguntou
De manhã, antes de deixarem o quarto da enfermaria, os dois se abraçaram e beijaram“Benza, mãe”, pediu Cristiano“Estou doidinha para chegar logo o momento”, disse Noeme, empolgadaForam levados em cadeira de rodas até o centro cirúrgicoNo caminho, a mulher chorou“É de alegria”, fez questão de esclarecerFicaram em quartos separados, mas vizinhos
O rim, então, foi posto em um recipiente com uma solução gelada, usada para conservá-lo, e foi transportado até o quarto vizinho, onde estava Cristiano, sedado e desfalecidoA outra equipe médica já havia começado, por volta das 10h, a preparar a parte inferior da cavidade abdominal do rapaz, para acomodar o novo “morador” “Anatomicamente, é uma região mais propíciaÉ mais fácil de ligar o rim à bexiga e de manipular os vasos, mais expostos”, explicou o cirurgião Ricardo Gontijo, coordenador do pessoal que, calmamente, como se apenas repetisse algo rotineiro, operou CristianoOs vasos a que se refere Gontijo são os ilíacos, que, após serem ligados ao órgão, fazem-no corar novamente, irrigado com sanguePor último, o rim foi conectado à bexiga por meio do trecho de ureter trazido da doadoraOs rins “antigos”, inofensivos e quase inoperantes, continuaram onde sempre estiveram.
Novo tratamento
Ao meio-dia, a operação de Cristiano foi encerradaDo lado de fora, duas pessoas ansiavam por notíciasA fisioterapeuta Keila Vieira Gusmão, de 29 anos, é a única mulher da prole de NoemeJá Maria Aparecida Luiza Vieira, de 52, é irmã da doadora“Essa noite eu nem dormi, de tanta preocupaçãoOs parentes ligam a toda hora”, disse MariaDe repente, uma maca saiu do centro cirúrgico“Ai, aiTá doendo”, ouviu-se a voz de CristianoDiante do semblante aflito de Keila, o anestesista Leonardo Padovani explicou que não era dor que ele sentia, já que havia tomado morfinaÉ que ele sentia uma vontade irresistível de urinar, devido a uma estreita sonda ligada à sua bexiga por meio da uretraAo mesmo em que media a quantidade de urina produzida pelo rapaz, a sonda servia para deixar livre o fluxo do líquido e diminuir a pressão dele sobre a bexiga, evitando que os pontos do ureter se rompessem.
Cristiano foi levado ao CTI, onde ficaria por no máximo 24 horas, se tudo corresse conforme o esperadoJá Noeme foi transportada de volta ao quarto 432 da enfermariaSegundo os médicos, ela deve receber alta amanhãJá o rapaz fica no hospital por seis ou sete diasA partir de agora, ele ficará tomando doses diárias de medicamentos imunossupressores pelo resto da vida, para reduzir as chances de o corpo rejeitar o novo rimNo primeiro ano pós-cirurgia, terá que realizar exames de sangue e urina uma vez por mêsNo segundo ano, os exames passam a ser bimestraisE a partir do terceiro ano, trimestrais.
Os médicos precisam se assegurar também de que, com o nível de imunidade mais baixa que o normal, o paciente não favoreça o desenvolvimento de infecções ou outros efeitos colaterais, como doenças cardiovasculares“Depois do transplantes, alguns acham que se livraram do problemaNa verdade, é o início de outro tipo de tratamento, com mais expectativa de vida, tanto em quantidade quanto em qualidade”, observa GontijoApesar de ter tomado sedativos, Noeme ainda sentia dores no final da tarde de ontemO mais importante, porém, é que a vida do filho melhoraria dali em dianteCom lágrimas caindo lentamente pelo rosto, suspirou: “Estou aliviada demais”.