Juiz de Fora e Santos Dumont – Houve um tempo em que era possível dormir cortando o Vale do Paraopeba ou jantar à luz de abajures cruzando a Serra da MantiqueiraTudo na mesma viagem, saindo de Belo Horizonte para o Rio de JaneiroAs paisagens eram rasgadas do anoitecer ao amanhecer por um colosso prateado que corria sobre trilhosEra o Vera Cruz, o trem de luxo que por aproximadamente 35 anos, até 1990, fez o transporte de passageiros entre as duas capitais, um percurso de 640 quilômetrosPoderia continuar rodando, mas foi condenado a ter seus vagões separados e colocados a apodrecer exatamente ao longo do trecho em que reluziuPartes da composição estão hoje em pátios ferroviários de Belo Horizonte, Santos Dumont e Juiz de Fora, ambas cidades na Zona da Mata, com os vidros das janelas quebrados, o assoalho trincado e os poucos móveis restantes se esforçando para dizer o que já foram.
O Vera Cruz partia às sextas-feiras e domingos de Belo Horizonte, da Estação Central, e do Rio de Janeiro, da Central do Brasil, às 20h15A composição era formada por sete ou oito vagões, dependendo do volume de venda dos bilhetesNa configuração básica, o trem viajava com um vagão para transporte de correspondência, um para bagagens, dois com poltronas para 76 passageiros cada, um em que funcionava o restaurante e dois com cabines para até quatro pessoasUm vagão conhecido como salão-cauda, para 44 pessoas, poderia ser acoplado à composição.
A última viagem do Vera Cruz ocorreu em março de 1990Antes de serem transferidos para pátios de Minas Gerais, os vagões do trem ficaram estacionados em trilhos da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde começaram a se deteriorarEm 1996, com a privatização da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), a União iniciou a divisão da responsabilidade sobre os chamados ativos fixos (as estradas de ferro) e rodantes (trens e vagões)
Em Santos Dumont, partes do Vera Cruz se misturam às de outra composição semelhante, o Trem de Prata, que fazia o transporte de passageiros entre São Paulo e Rio de Janeiro, e foi retirado de circulação em 1995Os vagões imobilizados na cidade estão sob a guarda do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas GeraisO mesmo ocorre em Juiz de Fora, onde estão juntos, parados ao tempo, vagões do Vera Cruz e do Trem de Prata, também sob responsabilidade do Dnit e de concessionárias da malha ferroviáriaMesmo com todas as composições em mal estado de conservação, tanto em Belo Horizonte como em Santos Dumont e Juiz de Fora há um forte esquema de segurança armada para evitar a entrada de pessoas nos pátios onde elas estãoA contratação das equipes, no entanto, só ocorreu recentemente, depois de os vagões terem partes roubadas para serem vendidas como sucata.
REFORMA
O presidente da organização não-governamental (ONG) Amigos do Trem, Paulo Henrique do Nascimento, afirma que a associação tem interesse em reformar os vagões do Vera Cruz para utilização em linhas de trens turísticos a serem criadasA ONG já conseguiu colocar em condições para circulação uma litorina (vagão com motor próprio), cedida pelo governo federal, que deverá fazer a ligação entre o município de Santos Dumont e a Fazenda Cabangu, onde nasceu Santos Dumont, o pai da aviaçãoO trecho entre a fazenda, transformada em museu, e o município tem aproximadamente 15 quilômetros
Outros tempos
‘Numa noite fresca de abril’
Otacílio Lage
“Eu tinha exatamente 2 anos quando o Vera Cruz trafegou pela primeira vezVinte e três anos depois, eu faria a primeira viagem nele, entre Belo Horizonte e o Rio de JaneiroAntes, já havia ido à capital fluminense, mas de ônibus, pela Viação Cometa, da qual os belo-horizontinos, então, eram refénsEra início de abril e a noite estava frescaViajei em um carro de 76 poltronas, nem todas ocupadasA composição oferecia carro-leito, com cabines individuais, mas o dinheiro era curto para tanto conforto