Jornal Estado de Minas

Estudante com síndrome de Down é a 1ª do Brasil a se matricular em um curso de direito

Jovem mineira portadora de síndrome, que trabalha como caixa de supermercado, é a a 21ª pessoa no Brasil e a primeira em Minas Gerais a se matricular em uma faculdade - Foto: Gladyston Rodrigues/EM
“As pessoas me olham de um jeito estranho, como se eu fosse diferente”, percebe Aline. A professora se admirou quando, ainda criança, ela foi a primeira a aprender a ler em uma turma de escola regular. Muita gente se espanta ao descobrir que a moça acorda antes de o sol nascer e, sozinha, pega dois ônibus para chegar ao trabalho. Quem a conhece, porém, não se surpreende ao saber que ela quer estudar para ser advogada. Aos 25 anos, Aline Hélio Figueiredo Terrinha é a primeira pessoa com síndrome de Down a se matricular em um curso de direito no Brasil.


Até hoje, apenas 20 pessoas com a síndrome, classificada como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ingressaram no ensino superior no país, segundo levantamento da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (Febasd). Os cursos mais procurados foram educação física (quatro estudantes) e pedagogia (três). O Rio Grande do Sul é o estado campeão em número de universitários (quatro), seguido por São Paulo (três). Aline será a 21ª da lista, a primeira mineira.

“Direito é um curso mais exigente, o estudante tem que ler muito. Ficamos felizes com a iniciativa da Aline”, diz a presidente da Febasd, Maria de Lourdes Marques Lima.

Em seu primeiro vestibular, Aline foi aprovada para ingressar em uma faculdade particular em Belo Horizonte. As aulas começam em 1º de fevereiro de 2013. No entanto, a moça não conseguiria pagar a mensalidade de R$ 650. “É quase meu salário”, explica. Ela tentará obter uma bolsa pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), programa federal mantido pelo Ministério da Educação. Se tudo der certo, frequentará as aulas à noite, depois de sair do supermercado no qual é atendente de caixa.
Ela precisaria abandonar o curso de auxiliar administrativo, iniciado em maio, pois passaria a ter poucas horas de sono, já que precisa acordar às 5h para chegar ao trabalho.

A moça mora com os pais e uma irmã em uma casa simples no Bairro Bela Vitória, Região Nordeste. Por volta das 5h40, pega o primeiro ônibus e desce no Centro, onde toma outro até o supermercado, no Bairro Funcionários, Região Centro-Sul. O expediente não tem horário exato para terminar, geralmente entre as 18h e as 19h. Por causa da rotina corrida, a mãe, Regina Figueiredo Terrinha, não queria que a filha estudasse à noite. “Pra ser sincera, sou contra. Fico com muito dó de ela trabalhar o dia todo e depois ainda ter aula. Vai ser uma maratona muito puxada. Mas ela é bem cabeça dura: quando quer, quer mesmo”, resigna-se a mulher, que tem 56 anos e é auxiliar de enfermagem.
Aline está decidida: “Sei que é um curso difícil, mas se tiver força de vontade, perseverança, a gente consegue, na força de Deus”.

Caçula de quatro irmãos, Aline poderá ser primeira da família a ter diploma de nível superior. Ela nasceu em Montes Claros, no Norte de Minas, a 424 quilômetros da capital. Com 4,6 quilos e 56 centímetros, era maior do que costumam ser bebês com síndrome de Down. O diagnóstico da doença foi difícil. “Um pediatra chegou a dizer que ela não tinha Down”, lembra a mãe. Os cabelos, geralmente finos e lisos, são crespos em Aline. Com o tempo, porém, algumas das características típicas se tornaram evidentes, como os olhos com pálpebras oblíquas para cima e a face mais plana. Manifestou também outro traço habitual: um problema na visão. “O olho direito quase não enxergava. Ela fez uma cirurgia, mas, por causa de um erro médico, precisou retirar (o globo ocular)”, conta Regina.
No lugar, implantou-se uma prótese de silicone.



Convivência com o preconceito

Todavia, não se notou em Aline um dos sintomas mais corriqueiros: o déficit de desenvolvimento intelectual. “Nunca a diferenciei dos outros filhos. Cuidei dela sem frescura. Nunca tive tempo de ficar paparicando ninguém; trabalhava demais”, conta a mãe. Matriculada em uma escola regular, ela foi a primeira da sala a aprender a ler. “A professora se surpreendeu. Até eu me surpreendi. Não era tão estudiosa, mas nunca levou bomba, sempre teve boas notas”, ressalta Regina. No histórico escolar, as melhores notas era alcançadas em história, português, filosofia e sociologia. Apesar do bom desempenho, sofria preconceito dos colegas.
“Eles me tratavam mal, me humilhavam, falavam que eu tinha problema, que era feia, que era demônio. Ser rejeitado é ruim demais”, diz Aline.

Ela concluiu o ensino médio em 2005, chegou a fazer cursinho pré-vestibular, pensava em tentar entrar na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Mas não me preparei muito bem. Não estava muito interessada. Quis descansar um pouco a cabeça depois de tantos anos de escola”, explica. Em 2008, ela decidiu procurar um emprego. “Queria minha independência financeira, conhecer pessoas diferentes.” Indicada pelo Serviço de Proteção Social à Pessoa com Deficiência, mantido pela Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social de BH, Aline conseguiu uma vaga em um supermercado. Começou na salsicharia, embalando embutidos. Depois, tornou-se empacotado e, afinal, foi para o caixa.

No trabalho, apesar de a funcionária ser eficiente, o preconceito persiste. “Uma vez, uma cliente disse que eu era lerda, tinha problema, não podia trabalhar ali. Foi até reclamar com o gerente”, recorda. Sem querer se identificar, uma colega confirma a discriminação. Alguns clientes do supermercado, quando podem escolher, evitam usar o caixa da moça. “Mal sabem eles que a Aline, mesmo sendo especial, é a única entre as caixas com conhecimento e preparo suficiente para fazer uma faculdade”, diz a colega. Aline chegou a pensar em cursar medicina veterinária, mas acabou se decidindo pelo direito. “Quero advogar. Quando estiver bem fera na área, quero entrar na Promotoria de Justiça”, ambiciona.

LIVROS
Aline tem qualidades caras a um bom advogado. Expressa-se com segurança, tem cuidado ao escolher as palavras. No começo da conversa, ela parecia tímida, mas logo desandou a falar. “Essa fala mesmo, igual pobre na chuva”, brinca a mãe, rindo. Nas horas vagas, a filha gosta de ler, sobretudo livros de história. Atualmente, está lendo Cartas para Hitler, de Henrik Eberle, que reproduz a correspondência enviada ao ditador e narra, a partir dela, a ascensão e a queda do nazismo. Foi um dos cinco livros que ela ganhou de presente de um cliente do supermercado. Aline é fã dos enredos misteriosos de Agatha Christie e adora o romance Capitães da areia, de Jorge Amado. “A história me chamou a atenção. As crianças que viviam na rua eram humilhadas, tratadas pior do que bicho”, narra.

Outra paixão são as artes plásticas. Ela frequenta o Palácio das Artes, no Centro, cujos funcionários já a reconhecem. Nas últimas férias, em outra galeria, visitou a exposição Caravaggio e seus seguidores e se deliciou com as obras do pintor italiano. Também gosta muito de ouvir música sertaneja e de torcer pelo Atlético. Satisfeita, sorri ao descobrir que seria a primeira pessoa com síndrome de Down a cursar direito, mas enfatiza não querer provar nada: “Sei o que sou, não tenho que dar satisfação. Não sou diferente de ninguém”. A iniciativa de Aline deve “abrir caminhos”, avalia Maria de Lourdes, presidente da Febasd: “Ela serve de exemplo para toda a sociedade, que deve respeitar mais quem tem a síndrome. Queremos parabenizar Aline. Que ela desempenhe bem suas atividades e brilhe muito, para orgulho de todos nós”.
 

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