Enquanto a morte de dois estudantes em pouco mais de um mês gera mobilização para tentar controlar o abuso de álcool nas repúblicas de Ouro Preto, os “donos das casas”, muitas delas integrantes do patrimônio federal, demonstram não ter qualquer preocupação com o assunto – pelo contrário. Tanto que já oferecem pacotes de hospedagem e festas no carnaval 2013 com direito a muita bebedeira durante e até depois da folia – “para quem aguenta mais um dia de golo”, como anuncia uma das moradias estudantis da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Disponíveis no portal carnavalouropreto.com, os anúncios trazem entre os principais atrativos cerveja e destilados liberados “24 horas”. No que parece uma infeliz coincidência diante do último incidente fatal envolvendo consumo excessivo de bebidas por um universitário na cidade histórica, uma das festas de encerramento foi batizada “Só não vai quem já morreu”. A maior parte dos pacotes à venda no site especializado são oferecidos por repúblicas de propriedade da Ufop, abrindo as portas para a farra em imóveis públicos.
Pressionada pela comunidade, a reitoria da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), proprietária das moradias estudantis, instaurou ontem comissão de sindicância para apurar a morte de Pedro Silva Vieira, na madrugada do dia 30. O aluno de química industrial morava na república federal Saudade da Mamãe e faleceu depois de uma noitada regada a doses generosas de álcool na moradia. A Ufop promete averiguar todas as circunstâncias relacionadas ao caso e se reúne hoje com representantes da Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto (Refop) para discutir o assunto.
Além de questionar o uso econômico dos imóveis públicos, outra ação do MPF recomendou que a Ufop adotasse critérios socioeconômicos para a escolha dos moradores das repúblicas. Apesar de contar com programas de assistência estudantil e um alojamento para moradia de alunos carentes, a instituição alega dificuldades técnicas em aplicar o critério. “Não temos assistentes sociais e psicólogos para aplicar isso. Acreditamos também que, como há muitas pessoas morando no mesmo quarto em repúblicas, a questão da afinidade é importante”, afirma o pró-reitor de Administração André Luís dos Santos.
A Resolução 1.150 da Ufop, que contém o Estatuto das Residências Estudantis, aponta que cada casa deverá ter seu próprio regimento interno e oferecer aos estudantes “condições de moradia em ambiente que se assemelhe ao familiar e, consequentemente, propicie melhores condições de estudo”. A Ufop não cobra qualquer taxa dos moradores das repúblicas, responsáveis por pagar contas e arcar com a manutenção dos imóveis. O documento informa que a residência usará de critérios próprios de seleção, devendo dar prioridade aos candidatos mais desfavorecidos economicamente. Na prática, os principais pontos avaliados são afinidade e cumprimento das tarefas domésticas, que incluem provas regadas a álcool em uma espécie de maratona de admissão.
O pró-reitor de Administração alega que, até a morte dos estudantes, a Ufop não tinha conhecimento de qualquer denúncia relacionada ao abuso de bebida alcóolica nas moradias, e afirma que a instituição está tentando pôr ordem nas casas. “Agora vamos amadurecer essa discussão, que, infelizmente, é um fenômeno comum às cidades universitárias”, afirma. “De 2006 para cá, estamos avançando na regulamentação das moradias. Antes disso, não sabíamos nem quem morava nessas casas. Hoje temos um cadastro, exigimos comprovação do que está sendo arrecadado e de como está sendo usado”, diz André.
‘Renda corrupta’
Moradora de Ouro Preto, a historiadora e doutora em democracia Kátia Campos, interlocutora da comunidade com a Ufop, define esse sistema como uma “anomalia estranhíssima”. “A renda privada gerada a partir de propriedade pública é escandalosa e corrupta. As festas caracterizam um desvio de uso da moradia estudantil. A universidade está sendo criminosa ao conceder a gestão de uma propriedade pública a terceiros. Esse pacto de permitir festas em troca da manutenção é um caixa dois”, dispara.
Para Kátia Campos, as mortes de Pedro Vieira e de Daniel Mello, de 27 anos – esta ocorrida em 27 de outubro, quando o rapaz foi encontrado morto depois de consumir doses fartas de álcool em festa na república Nóis é Nóis – são consequência de uma rotina de abusos denunciada há mais de 10 anos. “A moradia estudantil é programa assistencial financiado pelo governo e deveria ter como objetivo fornecer um lugar de estudo e convivência adequado”, ressalta, lembrando de outros desvios envolvendo as residências. “Uma vez, uma família de traficantes se instalou em uma das repúblicas. A Ufop só soube quando todos foram presos.” Procurado pelo Estado de Minas, o presidente da Refop, Luiz Philippe Albuquerque, disse que só vai comentar o assunto depois da reunião com a reitoria, marcada para hoje.
Análise da notícia
Patrimônio de todos
Álvaro Fraga
Já passou da hora de a Reitoria da Ufop e o Ministério Público definirem critérios rigorosos para o funcionamento das repúblicas federais em Ouro Preto, pois o patrimônio público não pode ser usado ao bel prazer dos estudantes. Os alunos não são donos das repúblicas e o que fazem há muitos anos – abrindo as portas desses espaços para festas nas quais a apologia ao consumo de álcool é a grande atração – é inaceitável e ilegal. Ainda mais no momento em que duas famílias, que perderam os filhos em celebrações nas quais houve consumo descontrolado de bebidas alcoólicas, aguardam explicações para o que ocorreu com os jovens nessas repúblicas.