Pressão por aceitação social, constrangimento e intimidação são circunstâncias bem conhecidas de calouros que tentam uma vaga em algumas repúblicas estudantis de Ouro Preto. Eram novatos, ou “bichos”, como são pejorativamente chamados, os dois alunos da universidade federal ouro-pretana que morreram em pouco mais de um mês, entre outubro e novembro, possivelmente por causa da ingestão exagerada de álcool. “Os bichos acham que têm que beber muito para serem aceitos naquele círculo social”, diz Geraldo*, de 19 anos, estudante de filosofia da Ufop. No mês passado, no restaurante principal da instituição, ele participou de protesto contra o processo de admissão de moradores em algumas repúblicas. “Quantas mortes ainda ocorrerão até que essa tradição mude ou acabe?”, questiona. O jovem não frequenta mais “rocks”, as festas feitas toda semana por repúblicas. “Já fui a algumas. Em quase todas vi gente passando muito mal, vomitando, caindo no chão. É só bebida, droga, pegação”, relata.
Em Ouro Preto, o arsenal de trotes parece ser ilimitado. À equipe do EM, estudantes contaram que neste ano, em uma noite, um grupo de “bichos” se dirigiu ao quartel-general das festas universitárias, o Centro Acadêmico da Escola de Minas (Caem), na Praça Tiradentes, todos com sacos plásticos de lixo, com furos para a cabeça e os braços, à maneira de vestidos. O bizarro cortejo era tocado por veteranos, que ordenavam: “Desfila, bichão”.
Nas repúblicas, uma das punições mais comuns é o “vento”. Os veteranos espalham as roupas do “bicho” pela casa e, às vezes, também reviram guarda-roupas e camas. “O vento era todo dia, como um castigo para o bicho que tivesse deixado de fazer algo que eles pediam”, conta o estudante da Ufop Rafael*.
Depois de ser rejeitado para uma vaga em uma república federal, o jovem penou para continuar vivendo em Ouro Preto. Filho de lavradores aposentados, tinha pouco para gastar em aluguel. Acabou se instalando em um pequeno quarto em bairro distante do Centro, onde paga R$ 150 por mês. “Pensei que somente a boa convivência, o fato de eu ajudar nas tarefas domésticas e dividir as contas seria suficiente para eu ser aceito. Mas são eles (os veteranos) que decidem o tanto que você vai beber, a hora que você vai e volta do rock”, diz Rafael.
Advertência
Antes de se mudar para a cidade, Rafael foi alertado por um amigo de que não suportaria a “batalha”. Marcos*, hoje aos 24 anos, sabia do que estava falando. Ele diz que, em 2006, foi “bicho” por um mês na moradia particular Vaticano, quando estudava engenharia de minas na Ufop. “Nos primeiros dias, eles (veteranos) dão uma aliviada. Depois começa o quebra-pau”, define Marcos, que também foi exortado a beber, mas resistiu.“Sempre tem bicho que obedece para agradar, contrariado”, acrescenta. Ele afirma ter ido a uns 20 rocks. “Era quase um por dia. Vi muita gente ficar bêbada, vomitar, cair no chão. Isso tinha sempre.”
Marcos também sofreu trotes. Uma vez, para recuperar as roupas espalhadas por repúblicas, teria que tomar um copo de cachaça em cada uma. “Quem não bebia, tomava água quase fervendo. Foi o que eu fiz. É até pior do que álcool”, diz. Em sua casa, os “bichos” precisavam arrumar o quarto quase todo dia, sob ameaça de vento. Em algumas repúblicas, relata, calouros tiveram que sair nus à rua, de madrugada, enquanto veteranos os molhavam com água gelada. “Não há razão para isso, é só sadismo”, acredita Marcos, que hoje mora em BH e é recém-formado em ciência da computação.
Procurada, a república Vaticano não quis se manifestar. “Não entraremos nessa polêmica. As informações de vocês são parciais”, justificou o morador que atendeu o telefonema.