Por pouco, a história de Rafael (nome fictício) não virou manchete de jornal. Estudante da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o rapaz passou mal depois de consumir muita bebida alcoólica em uma festa no ano passado. Precisou ser carregado até o quarto que ocupava em uma república na cidade histórica da Região Central, onde vomitou muito. Na manhã seguinte, acordou com tremores fortes e o coração acelerado. “Quando fiquei sabendo do ocorrido com o Daniel, pensei: ‘Meu Deus, podia ter sido comigo’”. Ele se refere ao estudante de artes cênicas Daniel Macário de Melo Júnior, de 27 anos, encontrado sem vida na república particular Nóis é Nóis, em 27 de outubro. Segundo laudo do Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte, Daniel tinha taxa de 70,1 decigramas de álcool por litro de sangue, quase 12 vezes mais do que o índice considerado embriaguez para questões de trânsito, que é de 6 decigramas/litro. Em 30 de novembro, outra morte acentuou o misto de alívio e preocupação sentido por Rafael desde a última bebedeira.
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“Eu não bebia, não gostava. Não sabia nem abrir uma garrafa de cerveja”, recorda Rafael, de 21 anos.
“Não tinha coação física, mas psicológica”, ressalta Rafael. Os veteranos o estimulavam: “Vem cá, bicho. Toma essa cachaça”. Alguns provocavam: “Ah, bicho, você não vai fazer amizade bebendo leitinho”. Uma vez, um morador ameaçou: “Se você não beber, vai ser difícil ser escolhido para morar com a gente”. Receoso de encarar trotes ou de ter de pagar aluguel caso não conquistasse uma vaga na república, cedida pela Ufop, o calouro aquiesceu.
De madrugada, Rafael sentiu os efeitos da batalha: passou mal e precisou ser carregado até seu quarto por um “semibicho”, seu superior imediato na hierarquia das repúblicas. Deitado, vomitou muito. Estava tão embriagado que nem sequer conseguia acertar o balde posto ao lado da cama para aparar o resultado da bebedeira. “De manhã, acordei tremendo. Fui tomar banho, mas não tive condições. Desci as escadas para a cozinha apoiando nas paredes. A empregada da casa queria me levar ao hospital”, relata o rapaz. Depois desse dia, Rafael decidiu que não mais se deixaria constranger.
Em abril de 2011, Rafael não se surpreendeu ao ser “catado”, como se diz quando alguém não passa pelo crivo dos inquilinos. “Alegaram que eu não tinha o perfil da galera”, lembra, com um sorriso irônico. Segundo o relato do rapaz, e de outros estudantes da Ufop, os trotes e o estímulo à ingestão excessiva de bebidas alcoólicas continuam a fazer parte do processo de escolha de quem pode ocupar moradias estudantis, particulares ou públicas. Parte das 58 residências cedidas pela Ufop, entre elas a que rejeitou Rafael, desrespeitaria o Estatuto das Repúblicas Federais, aprovado em 2010, que veda “brincadeiras constrangedoras que atentem contra os princípios de dignidade da pessoa humana”.
O presidente da Associação dos Moradores de Repúblicas Federais de Ouro Preto (Refop), Luiz Philippe Albuquerque, admite que “bichos” sentem-se estimulados a beber, mas não acredita que sejam coagidos. “Quando você bebe, fica mais extrovertido, consegue se socializar melhor. O bicho acaba bebendo para se enturmar. Não há pressão”, alega.