O pente-fino para verificar as condições de segurança em boates e casas noturnas de Belo Horizonte está decretado. Mas, apesar de a reação da prefeitura da capital ter sido anunciada quatro dias depois da tragédia na Boate Kiss, que matou 235 pessoas no Rio Grande do Sul, e bem depois de providências semelhantes tomadas em outros estados (veja quadro), as inspeções ainda não têm data para começar. A PBH anunciou ontem que vai apertar o cerco contra os estabelecimentos, mas ação mesmo, só depois de concluído um levantamento sobre a situação de cada um. “Estamos fazendo um planejamento para direcionar nossas vistorias. A ação fiscal é de rotina, mas vistorias específicas (para verificação de alvará e da existência de plano de segurança contra incêndio e pânico) faremos depois desse planejamento”, informou o secretário municipal de Serviços Urbanos, Pier Senesi Filho.
Cinco dias depois da tragédia em Santa Maria (RS), ocorrida na madrugada de domingo, a PBH ainda não sabe sequer a real situação das casas de entretenimento na capital. O prefeito Marcio Lacerda informou ontem que 58 estabelecimentos do gênero são reconhecidos pela administração municipal, mas admitiu que pode haver irregularidades mesmo entre eles.
“Fazemos fiscalizações, notificações e acredito que nenhum desses 58 esteja sem o alvará, mas pode ser que haja alguma casa funcionando de forma clandestina”, disse.O total pode estar bem abaixo da realidade. O secretário Pier Senesi afirmou que será necessário fazer uma nova definição e encontrar um padrão para determinar quais locais se enquadram na categoria de boate. “Há empreendimentos que têm alvará para funcionar como restaurante, mas já incorporaram uma pista de dança ou fazem um jantar dançante à noite”, diz. “Temos que universalizar essa informação. Se atraiu público, tem determinado número de pessoas frequentando, vamos enquadrar essas casas no cadastro de atividades, para que seja feito um estudo mais aprofundado”, completa.
O secretário garantiu que foram feitas vistorias em boates de BH ao longo desta semana, mas não disse quantas nem quais teriam passado pelo crivo dos fiscais. Também não informou quais são as 58 identificadas pelo município nem quantas delas apresentam problemas. Segundo ele, a reserva visa a “resguardar o direito de terceiros”. Senesi acrescentou que as fiscalizações serão anunciadas, mas que os locais não serão divulgados. Ele espera que os empreendedores em situação irregular procurem a prefeitura e os Bombeiros para resolver o problema. Nas próximas vistorias, quem não tiver o auto de vistoria da corporação será notificado.
Os Bombeiros também afirmam que foram feitas fiscalizações esta semana, mas dentro da rotina, sem qualquer operação especial. A assessoria não informou a quantidade de vistorias nem o resultado delas. Na segunda-feira, um bar com música ao vivo na Rua Diamantina, no Bairro Lagoinha, Região Nordeste de BH, foi interditado pelos militares.
EXIGÊNCIAS A partir de agora, donos de casas noturnas deverão obedecer a critérios mais rígidos. Especialista em planos contra incêndio para grandes empresas, Nissan Mardey, da Projecêndio Projetos, ressalta que os equipamentos são dimensionados principalmente de acordo com a área e a altura de cada edificação. Para aquelas com área inferior a 750 metros quadrados, é exigido um plano mais básico, com itens como placas de sinalização e iluminação e saídas de emergência, além de extintores. Para aquelas com espaço superior, são necessários hidrantes, brigada de incêndio, controle de materiais de acabamento e segurança estrutural, entre outros.
Ele lembra ainda que são exigidas pelo menos duas saídas, preferencialmente instaladas distante uma da outra, com o sentido de abertura para fora e com barras antipânico, que permitam a abertura em toda a extensão da porta de maneira rápida. “Toda saída deve ter no mínimo 1,10m de largura. Quanto às dimensões das portas, deve ser feito cálculo de saída em função da área e do tipo de ocupação da edificação. Cada 0,55m de largura de porta comporta a saída ordenada de 100 pessoas em um minuto”, diz.
O projetista destaca ainda que materiais inflamáveis ou combustíveis, fogos de artifício e sinalizadores não podem de forma alguma ser usados em locais fechados. Para quem gosta de uma boa balada, Nissan diz que o ideal é observar os pontos de saída e os equipamentos de combate a incêndio presentes para, em caso de necessidade, poder tomar providências o mais rapidamente possível. “O principal é não entrar em pânico, observar as placas indicativas de rotas de fuga, se manter agachado para ter um nível maior de oxigênio e diminuir o risco de desmaio e seguir as faixas indicando a saída.”
Análise da notícia
A quem interessa a demora?
Álvaro Fraga
A demora da PBH em fiscalizar boates e casas de show da capital para verificar irregularidades e ameaças de incêndio traz riscos para a população e é um prêmio para empresários que descumprem a lei. Com esse atraso, muitos deles ganham tempo para corrigir ou mascarar as falhas e evitar autuações. Da mesma forma, não divulgar nomes dos locais que possam estar irregulares é outro equívoco, pois o valor da vida humana está acima de qualquer interesse de terceiros. Saber se determinado local é seguro é direito do cidadão. O poder público não pode se furtar a divulgar informações desse tipo, sob pena de contribuir, mesmo que indiretamente, para a repetição de tragédias como a do Rio Grande do Sul.
Ofensiva resulta em interdição em Betim
A primeira fiscalização realizada pela Defesa de Civil em casas noturnas de Betim, na Grande BH, depois do incêndio que matou 235 pessoas na cidade de Santa Maria (RS) terminou com a interdição do Rota 66, estabelecimento que funcionava como bar e casa de shows, com capacidade para 500 pessoas. A informação foi divulgada pelo vice-prefeito, Waldir Teixeira. Segundo ele, o estabelecimento estava com o alvará de funcionamento vencido havia dois anos. Os proprietários terão prazo, ainda não definido, para se adequar e reabrir a casa.
O estabelecimento foi vistoriado na manhã de ontem. Logo na entrada os técnicos observaram a falta de extintores de incêndio nos locais sinalizados para o equipamento, além de ausência de saídas de emergência. Depois de alguns minutos de vistoria, seis extintores foram encontrados amontoados atrás de uma pia, na cozinha.
Em algumas paredes também foram encontradas placas de espuma para isolamento acústico altamente inflamáveis, como constatou o engenheiro Josué Moura. “Em uma situação de incêndio, esse tipo de espuma entra em combustão rapidamente e espalha as chamas por todo o local”, explicou. Foram encontrados também botijões de gás armazenados de forma inadequada, fios elétricos expostos e um forro de PVC muito próximo ao fogão.
Uma das proprietárias atribuiu os problemas a uma reforma recente. “Estamos aguardando a aprovação do projeto pelo Corpo de Bombeiros para colocar tudo em dia”, afirmou a sócia do Rota 66, Lívia Bessa.
Outras três casas noturnas foram visitadas. O Forró do Itamar, no Bairro Santo Afonso, teve problemas com as saídas de emergência, que não atendem à exigência de abrir para o lado de fora. O proprietário da casa, Itamar Almeira Silva, foi notificado. Os demais itens de segurança estavam regulares.
Canecão Mineiro é exemplo para o Sul
Brasília – O jogo de empurra entre a Prefeitura de Santa Maria (RS) e o Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul no caso do incêndio da Boate Kiss evidencia uma estratégia para escapar da responsabilização pela tragédia. E a preocupação das autoridades municipais e estaduais é justificada: o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que, em caso de omissão na fiscalização de casas noturnas, a responsabilidade de um incêndio fatal é da administração pública. Na tragédia do Canecão Mineiro, que em 2001 matou sete pessoas em Belo Horizonte, o STF determinou que a prefeitura pagasse indenização de 300 salários mínimos a uma das vítimas. Esse caso, que guarda fortes semelhanças com o drama da casa noturna gaúcha, servirá como parâmetro para os sobreviventes de Santa Maria e também para os familiares dos 235 jovens mortos.
O ministro do STF Marco Aurélio Mello foi o relator do processo contra a Prefeitura de BH. No recurso que chegou à Corte, ele manteve o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e determinou que a administração pública indenizasse a comerciária Gisele Aparecida de Oliveira Silva, hoje com 33 anos. O magistrado acredita que, no caso da tragédia de Santa Maria, também houve omissão das autoridades, o que possibilitará ações de indenização. “O Estado falhou e falhou redondamente”, diz o ministro. “O que notamos nesse contexto é uma falha no exercício do poder de polícia, que é o poder de fiscalizar. Se o Estado fosse mais atuante, quer mediante a atuação de fiscais da prefeitura, quer mediante a atuação do Corpo de Bombeiros, seriam evitados episódios como esse”, diz Marco Aurélio Mello.
O caso do Canecão Mineiro é o primeiro processo relativo a incêndios em casas noturnas a ser analisado pelo Supremo. A boate de Belo Horizonte não tinha alvará de funcionamento nem estrutura de prevenção à propagação de chamas. E as semelhanças não param por aí: assim como no drama de Santa Maria, o incêndio começou depois que o integrante de uma banda disparou um sinalizador durante a apresentação. “O Estado é responsável pelo funcionamento e pelo aparelhamento de casas públicas. E o que temos nesse caso de Santa Maria é uma inércia do Estado em suas atribuições. Houve falhas na fiscalização, na verificação do material usado no revestimento do teto, não havia extintores suficientes para fazer cessar o incêndio, portas de emergência e sinalização. Tudo se acumulou resultando nessa tragédia impactante, com a morte de 235 jovens”, afirmou Marco Aurélio Mello.
SEQUELAS Gisele Aparecida foi uma das 300 sobreviventes da tragédia do Canecão Mineiro. Ela estava na casa noturna na madrugada de 24 de novembro de 2001 e teve graves danos físicos e psicológicos. “Ficou com sequelas nas pernas, por causa das queimaduras. Mas o pior são os efeitos psicológicos: até hoje ela não entra em ambientes fechados, não vai nem sequer ao cinema”, comenta o advogado Antônio Carlos Aguiar, que representou a vítima. A decisão do Supremo saiu em 2009 e já transitou em julgado, mas ainda não houve o pagamento da indenização, porque a defesa discute o acréscimo de juros. Em valores atuais, o valor a ser pago pela Prefeitura de BH seria de R$ 203 mil, mas Gisele briga para que o montante seja corrigidos retroativamente ao dia da tragédia.
Para o advogado, que representa outras 30 vítimas do incêndio em Minas, a decisão do Supremo certamente servirá de jurisprudência para o caso da Boate Kiss. Nas ações cíveis, a Prefeitura de BH se esquivou da responsabilidade, a exemplo do que já ocorre na administração municipal de Santa Maria. “O acidente que lesionou as vítimas não ocorreu por falta de fiscalização municipal na casa noturna, mas pela conduta dos integrantes da banda de música contratada para o espetáculo, que utilizou de apetrechos de pólvora”, argumentou a prefeitura da capital mineira.