Mateus Parreiras
Pirapora – A menos de 50 centímetros da água, no convés de madeira, passageiros se agarravam onde podiam para atravessar as corredeiras do Rio São Francisco que arrebentavam nas pedras entre Sobradinho e Juazeiro, na Bahia. No trecho norte-mineiro do Velho Chico, a partir de Pirapora, o forró varava as noites no segundo andar da embarcação, com animados estudantes e viajantes rompendo o silêncio do sertão. Desbravador das Américas, o vapor Benjamim Guimarães singrou a Amazônia e o Mississippi, no coração dos Estados Unidos, transportando carvão, algodão e madeira do Minnesota ao porto de Nova Orleans.
Testemunha da história desses povos, o navio Benjamim Guimarães chegou ao centenário este ano, mas sem o esplendor de suas célebres jornadas. Alquebrado, ancorado no porto de Pirapora com a madeira trincada, pintura descascada e casco precário, ele já não desce o rio para viagens que durem mais de três horas (36 quilômetros) – muito aquém dos quase 30 dias de ida até Juazeiro (BA) e volta, perfazendo 2,7 mil quilômetros.
Se o navio não for reformado logo, será modesta a comemoração de seus 100 anos. O tombamento pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) ocorreu em 1985. A atual tripulação informa: são necessárias reformas de dois em dois anos para que o vapor possa repetir a tradicional jornada, de 1.371 quilômetros, entre Pirapora e Juazeiro. A última intervenção – incompleta, por sinal – ocorreu em 2007.
A Prefeitura de Pirapora, proprietária do vapor, apressa-se para restaurá-lo no segundo semestre e, assim, fazer a viagem comemorativa a Juazeiro no fim do ano. “Em abril, vamos tentar aprovar na Lei de Incentivo à Cultura o projeto de reforma completa do Benjamim Guimarães, que foi aprovado pelo Iepha e já conta com empresas interessadas”, afirma Anselmo Luiz Rocha de Matos, diretor financeiro da Empresa Municipal de Turismo de Pirapora. O custo foi estimado em R$ 1,3 milhão.
“O navio é o nosso maior atrativo. Recebemos turistas do mundo inteiro e com isso movimentamos a economia da cidade inteira”, informa Matos. De acordo com o Iepha, as condições do navio seriam “boas” e não há previsão de reforma ou de comemorações específicas do centenário.
Construído pelos armadores James Rees Sons & Co. em 1913, não se sabe o mês de batismo do navio. Ele chegou ao Brasil para servir à Amazon River Plate Company, no Rio Amazonas. Pelos trilhos da Central do Brasil, chegou desmontado a Pirapora, no fim da década de 1920, e recebeu o nome do pai do dono da empresa, Júlio Mourão Guimarães. Seria destinado ao transporte de passageiros na primeira e segunda classes, além de puxar lanchas a reboque com lenha, gado e outros tipos de carga.
Em 2004, o Benjamim Guimarães voltou ao Rio São Francisco, depois de passar décadas sem navegar. Atualmente, faz passeios aos sábados e domingos, com ingressos a R$ 40. No feriado de carnaval, estão previstos três passeios, exceto na sexta-feira.
Forró Na rampa de madeira que liga o porto ao navio, basta conversar com a tripulação para ser transportado aos tempos de ouro da navegação a vapor. O mais antigo tripulante em atividade é Petronílio Santos Silva, de 71 anos, a bordo desde 1973. Responsável pelo atendimento das cabines de primeira classe e do restaurante, seu Petu lembra casos que povoam o imaginário ribeirinho. “Vinham muitos estudantes para o Sul (Região Sudeste). Os homens usavam chapéu. As mulheres eram mais comportadas, mas, quando a sanfona começava, todo mundo caía no forró”, conta.
Em sua primeira viagem, seu Petu levou um susto. Poderia até ter morrido. “Por causa das lamparinas, muitos insetos voavam por lá. A mariposa entrou no meu ouvido e, de tão desesperado, quase pulei no rio. O capitão me segurou e pingou álcool para matar o bicho”, conta. Ele costuma divertir os turistas com o caso do cozinheiro que gostava de rapazes cearenses. “Certo dia, ele foi à rede em que um jovem dormia, na segunda classe. O menino puxou a peixeira e correu atrás dele. O cozinheiro gritava: ‘Num vai me matar não, Satanás’. Conseguiu escapar, mas foi uma confusão”, recorda.
Paixão pelo ofício do bisavô
Bisneto do mestre maquinista João dos Santos, o João Corujinha, que trabalhou no vapor no início do século passado, o atual ocupante dessa posição é Jason Batista Ferreira, de 56 anos. Com orgulho, ele descreve o funcionamento do navio. “O capitão puxa a alavanca do aparelho que chamamos de telégrafo e informa qual é a marcha de que precisa, que potência deseja. Embaixo, no convés, regulo a pressão e passo as marchas para chegar a essa potência”, detalha.
Jason se orgulha de seguir os passos do bisavô. “Já passou muita gente importante por aqui. O ex-presidente Lula, por exemplo. O ex-governador Francelino Pereira desceu jovem do Piauí para Minas Gerais pelo Benjamim Guimarães. Depois, voltou para recordar daqueles tempos passeando conosco”, afirma.
Aos 92 anos, o ex-governador ainda se lembra daqueles tempos. Fez a viagem aos 22. “Naquela época, o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) torpedeava navios na costa brasileira. Por isso decidi descer do Piauí para Minas pelos rios. Não foi uma viagem turística. Foi uma vitória. Levou 40 dias e choveu muito, mas chegamos sãos e salvos”, comemora Francelino.
Testemunha da história
Vários tripulantes do Benjamim Guimarães são parentes de antigos marujos e desempenham as mesmas tarefas dos homens que lá trabalhavam no início do século passado, quando o vapor percorria o Rio São Francisco de Pirapora a Juazeiro. O êxodo do Nordeste para o Sudeste, o transporte de tropas brasileiras para a Segunda Guerra Mundial e a formação do lago da usina hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia, são importantes fatos históricos testemunhados por quem praticamente morou naquele convés.
Para o contramestre Antônio Tadeu de Oliveira, de 64 anos, a parte mais emocionante da viagem é a passagem pelas corredeiras perigosas entre Sobradinho e Juazeiro. “É preciso muita habilidade. Se bater numa rocha e rasgar o casco, teremos sérios problemas. Mas isso nunca ocorreu”, garante. Ainda assim, o marinheiro admite: os furos no casco são frequentes, porque o São Francisco anda muito raso. “Se o rombo for pequeno, a gente tampa com madeira e panos. Para os grandes usamos até colchões e hastes de madeira como escoras”, revela.
O contramestre, que teve dois primos e um tio entre os pioneiros da navegação em Pirapora, garante: naquela paisagem que se desfruta ao longo do Rio São Francisco, ainda estão vivas as histórias do passado. Aliás, elas estão entre os motivos que o fizeram abandonar a aposentadoria e se apresentar no vapor. “Os antigos contam o caso da onça que pulou no barco e se escondeu no porão. Como o capitão era desagradável, na hora de matarem o bicho a tiros, os marinheiros aproveitaram para atirar na carga de querosene, pertencente a ele. Vazou tudo”, relembra, enquanto olha para o mato, de onde ainda espera surgirem onças.
A EMBARCAÇÃO
» Construção
1913, nos EUA
» Capacidade
190 passageiros, 78t de carga
» Alimentação
1metro cúbico de lenha (equivalente a 100 toras)
» Caldeira
1.840 litros de água do rio
» Estoque de lenha
60 metros cúbicos
» Potência
60 HP (12 mil kg de força)
» Propulsor
Roda de popa de 11 pás em madeira e ferro
» Dimensões
43,8 m de comprimento, 8 m de boca, 1,2 m de pontal, 9,25m de contorno. Calados máximo e mínimo: 1m e 0,6m.
» Tonelagem bruta
142t
» Velocidade
10,4 km/h (econômica) e 12,8 km/h (máxima)