Em Belo Horizonte, uma iniciativa do Judiciário já conseguiu preencher esse vazio para mais da metade das crianças que passaram pelo processo de reconhecimento. Mas no país, o universo de brasileiros sem o registro de paternidade pode ser ainda maior. Todo ano, mais 700 mil bebês dão entrada nos cartórios com uma incógnita na certidão. “Pai é coisa rara no Brasil. No nosso país, a pessoa criada a vida toda por mãe e pai pode se considerar premiada. O fenômeno assusta”, afirma Gabriel da Silveira Matos, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele cita síntese de pesquisa da Unesco, a ser publicada este ano, indicando que 70% das crianças nas favelas do Rio de Janeiro são sustentadas exclusivamente pelas mães. “Se assumiu a guarda do filho, a mãe tem de se responsabilizar por todos os aspectos, inclusive pelo direito da criança de conhecer o pai. A figura do pai é a responsável por impor limite na educação. Se o pai é omisso em casa, é ruim. Mas se ele nem existir no papel, é pior ainda e pode gerar revolta na fase da adolescência”, alerta o juiz.
Cabelos castanhos e olhos verdes, a bela Luísa, que aparece no início dessa reportagem, é fruto de um relacionamento da mãe, professora, com um empresário bem-sucedido de BH. Na ocasião, ao saber da gravidez, o pai exigiu o teste de DNA. Sentindo-se humilhada, a mulher afastou-se, levando a menina. “Nunca me faltou nada. Minha mãe e minha avó sempre deram conta de tudo. Minha carência é afetiva. Tento não pensar nisso, mas sinto como se tivesse um buraco no peito”, conta. E completa: “É como se todos os meus amigos tivessem pais maravilhosos, menos eu”.
RANCOR E ESTIGMA Não se engane, Luísa. Em 2009, o Censo Escolar relacionou 5,5 milhões de estudantes das escolas públicas no país sem registro paterno. O programa Bolsa-Escola também listou 3,3 milhões de fichas do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que incluem crianças fora da idade escolar, com omissão do nome paterno. “É uma questão cultural. Muitas vezes, a mãe deixa de agir por falta de informação, falta de recursos para pagar as taxas de cartório ou rancor em relação ao pai da criança. Pensam que seria mais prejudicial ao filho apresentar um pai que pode estar preso, ter fugido para outro estado ou já estar casado”, exemplifica o juiz Gabriel da Silveira Matos, do CNJ.
Mas, mesmo que muita gente pense ou diga o contrário, nascer sem pai declarado no papel na maior parte das vezes cria um estigma. Ainda que a mãe garanta a sobrevivência do filho e uma terceira pessoa ocupe o lugar afetivo, a omissão da origem paterna traz constrangimento à maioria. “A reação vai de cada um, dependendo da criação. Há casos extremos, de pessoas que chegam a não frequentar a escola, não prestam serviço militar e até arranjam documentos falsos e passam a viver na clandestinidade. Entram para o mundo do crime”, alerta o desembargador Fernando Humberto dos Santos, juiz da Vara de Registro Civil de BH.
Fim de uma procura de 2 décadas
O cinegrafista Bruno Ocelli viveu até os 22 anos sem conhecer o pai, criado pela avó e pela mãe. Com a maioridade e as campanhas pelo reconhecimento da paternidade, decidiu buscar suas origens. A partir de referências da mãe, conseguiu encontrar M.M., de 74 anos, caixeiro viajante, casado e com cinco filhos. O pai disse não ter assumido Bruno por já ser comprometido na época.
Intimado pela Justiça, o suposto pai esteve em audiência com o jovem e exigiu o teste de DNA, apesar da enorme semelhança física entre os dois. “Vim aqui na cara e na coragem. Ele pode não ser meu filho socialmente, mas é no coração”, garantiu. “É, ele tem uma boa lábia”, ironizou o rapaz, que reconhece ter herdado do pai o jeito namorador.
Hoje aposentado, M.M. admite que a atividade de caixeiro viajante pode ter gerado outros três filhos de mães diferentes. “Na última vez que eu te vi, você estava a tiracolo com sua mãe. Conversei com ela e expliquei que não seria aconselhável levar o caso adiante”, diz ele ao jovem, enquanto os dois aguardam o resultado do exame. Ao serem novamente chamados, ambos saem sorridentes da saleta e até ensaiam um abraço. “Finalmente tenho um pai”, comemora Bruno, que conta estar formado e não precisar de ajuda financeira.
Casos mais emblemáticos são registrados em uma espécie de livro de ouro, elaborado por iniciativa de Cristiane Silva, conselheira do Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Ela anota as mais belas histórias, com o cuidado de preservar as identidades dos personagens. No livro, há relatos como o de um pai que viajou ao exterior em missão pelo Exército e ao voltar apresentou-se espontaneamente para reconhecer a filha, de quase 2 anos. “Quando o DNA dá negativo, geralmente o candidato vai embora pulando de alegria. Não é o mais comum, mas também já presenciei homens em prantos ao descobrirem que o filho não é deles e acharem que tiveram a honra traída”, conta ela.
O PAPEL DO REGISTRO
Documento de maior valor na vida da criança, a certidão de nascimento representa:
– O nascimento do menor de idade para a vida civil.
– O registro de suas origens familiares (mãe, pai e avós).
– A identificação da sua origem genética
– Vínculo com o pai e familiares paternos
– Direito a pensão alimentícia
– Direito a herança
Possíveis consequências da omissão da figura paterna
– Sensação de abandono
– Discriminação em relação aos colegas da escola e no emprego
– Falta do vínculo com eventuais irmãos, tios e primos
– Perda do direito a pensão alimentícia e herança