Um exemplo típico do novo conceito que passa a se defendido no Judiciário ocorreu em Rondônia, em março do ano passadoEm ação judicial, uma mulher tentava anular o ato do ex-companheiro, que havia registrado a enteada mesmo sabendo não ser pai biológicoEm vez de aceitar a argumentação da mãe, que afirmava tentar corrigir um “erro do passado”, a Justiça determinou que os dois pais teriam direito a reconhecer a filhaA decisão foi tomada com base no laudo da assistente social do tribunal, que demonstrou que a menina mantinha vínculo afetivo com ambosMaior interessada na causa, a garota passou a receber dupla pensão alimentícia.
Para o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do IBDFAM, paternidade ou maternidade são funções exercidas socialmente“Tanto é que muitos pais biológicos abrem mão dessa funçãoHoje, é comum a criança nascer e ser criada pelo novo marido da mãe, que exerce a paternidade afetiva do enteado”, explicaSegundo ele, as novas formações de família criam situações inusitadas, como o caso do padrasto que criou o enteado e queria dar a ele de presente uma viagem à Disney
Cunha defende que, na nova versão do direito de família, uma criança pode ter direito a carregar o nome de dois pais na certidão de nascimento“Antes, a Justiça tirava o nome do pai biológico e substituía pelo do pai afetivoAgora, deixa os doisEssas decisões ainda são muito recentes no Brasil, mas configuram uma tendênciaMuita gente não reivindica a dupla paternidade, porque ainda não sabe que existe essa possibilidade”, explicaEle alerta, porém, que o mais importante é não deixar o nome do pai em branco no registro, ainda que o filho seja fruto da chamada “produção independente”“É uma forma de proteger a formação psíquica dos filhos, mesmo que o pai biológico não exerça a paternidade”, completa
Há ainda uma terceira via, mais raraEla fica clara em um episódio ocorrido em março do ano passado, quando a Justiça de Pernambuco determinou o registro de dois homens como pais de uma criança
Adotados têm que brigar por direitos
Nos casos de adoção, a convivência já tem prevalecido sobre a genética nos tribunais, para definir critérios de registroO problema começa quando o pai de criação morre e seus parentes biológicos entram na Justiça rejeitando o parentesco com o adotadoEpisódio do tipo ocorreu em Belo Horizonte, com as irmãs Vanda e Valdirene RodriguesAmbas foram criadas desde pequenas pela tia, irmã da mãe biológica, já que esta não tinha condições de saúde para assumir todos os filhosAs duas foram registradas pelos pais biológicos (Terezinha Rodrigues da Silva e Manoel Moreira da Silva), mas sempre viveram com os pais adotivos (Maria do Carmo Leite e Sebastião Leite)
“Mal conheci a Terezinha, estava com 1 ano e 5 meses quando ela morreuChamo de mãe a Maria do Carmo, que foi quem me criouAntes de ela também falecer, há sete anos, ela chegou a abrir um processo para doar a casa dela e os três barracões de aluguel à minha irmã, que não se casou e não tem para onde irNão deu tempoAgora, uma tia também quer uma parte dos bens e o caso está pendente na Justiça”, revela Vanda, que diz não ter interesse pessoal na causa, por já ter renda própria.
Segundo o advogado José Roberto Moreira Filho, que está à frente da causa, são pouquíssimos os pedidos de reconhecimento de dupla paternidade em MinasNos raros casos em tramitação, a situação mais comum é da mulher casada que engravida de outro homem, mas diz ao marido que é ele o pai“Depois de vários anos de convivência, com a relação já estremecida, durante uma briga a mulher joga na cara do marido que o filho não é deleEsse homem então entra com ação negatória de paternidadeEm casos desse tipo, a Justiça pode decidir em favor da criança, pois o que está sendo julgado é a preponderância da relação socioafetiva sobre a biológica”, explica José Roberto, coordenador da primeira pós-graduação em direito de família e sucessões da capital, criada este ano na Faculdade Arnaldo Janssen.
Ontem no EM
Na segunda matéria da série Pelo nome do pai, o Estado de Minas mostrou em sua edição de ontem que o Judiciário passou a intervir nos conflitos entre ex-casais que privam o filho do registro paternoA série, que termina hoje, revelou na primeira reportagem, publicada no domingo, que o país convive com quase 6 milhões de pessoas registradas apenas em nome das mães, e que a cada ano 700 mil bebês engrossam essa lista
Lei disciplina investigação
Desde a Lei 8.560, de 1992, conhecida como Lei de Investigação de Paternidade, a mãe passou a ter direito de indicar o suposto pai da criança, ainda que ele seja casadoMas ela também tem o direito de se calar civil e juridicamente, pois o gesto é de cunho espontâneo, como prevê a legislação“A mãe pode apagar esse capítulo da vida dela, em se tratando de crianças geradas por meio de bancos de sêmen, por exemploNão há um consenso sobre o que fazer nesses casosMas o ideal é que a mãe informe o nome do pai, não só para ter acesso à pensão alimentícia, como para que o filho saiba quem são seus avós, primos e irmãos paternos”, lembra Rodrigo da Cunha, presidente do IBDFAM
Nos casos em que a família decida guardar segredo até que esse filho atinja a maioridade, a única pessoa capaz de indicar o suposto pai no registro de nascimento é a mãe“O pai biológico só vai aparecer por indicação da mãe ou, de forma espontânea, por parte dele próprio”, alerta o presidente do IBDFAMPorém, iniciativas do Judiciário, como o programa Pai Presente, vêm atuando no sentido de pressionar as mulheres a indicar o nome do pai biológico, convencendo-as a preservar os interesses da criança, como vem mostrando o EM na série Pelo nome do paiApenas no ano passado foram mais de 4 mil registros bem- sucedidos em Minas.
Se a mãe é casada, subentende-se que o marido é o paiUm dos documentos mais importantes para indicar o reconhecimento da paternidade é a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitida pelas maternidades no momento do nascimento, com a assinatura da mãe e do pai, caso ele esteja presente na hora do partoMentor do Centro de Reconhecimento da Paternidade (CRP), o desembargador Fernando Humberto dos Santos afirma ser capaz de localizar a grande maioria dos pais omitidos nos registros“Se o jovem procurar o CRP, nós vamos correr atrás da informação, cruzando vestígios dos nomes informados pelas mães em bancos de dados das maternidades, Detran, Receita Federal e fichas criminais”, garante.
PRISÃO Segundo o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Gabriel da Silveira Mattos, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma percepção é de que muitos presos das cadeias brasileiras não informam o nome dos pais ao ser encarceradosÉ o caso de Julimar, de 29 anos, pai de JúliaEle está detido na unidade prisional Inspetor José Martinho Dumond, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de BHNa cadeia, pediu à mulher, Érika Tatiana de Sousa, durante os dias de visita, que preparasse os papéis para fazer o termo de reconhecimento da filha, nascida depois que ele foi preso por furto, com a esposa grávida
Ela levou ao marido o ofício do CRP, que permite o reconhecimento mediante carimbo e assinatura do pai e do diretor do presídio“Julimar faz questão de registrar a Júlia, porque não quer que ela passe pelo que ele passouGeralmente ele é ótima pessoa para conviver, muito espontâneo, mas nunca toca neste assunto (a própria paternidade)Ele se fecha”, conta a mulherSegundo ela, Julimar e o irmão não tiveram registro paterno e já não têm referências familiares, pois perderam a mãe e todos os parentes próximos